São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 1996
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Lula e a "globalização"

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O leitor inteligente me perdoará se eu voltar ao tema da "globalização"? Reconheço que o assunto é de uma vulgaridade total. Qualquer idiota de babar na gravata tem três ou quatro opiniões formadas e não hesita em pontificar sobre o tema. Quase ninguém percebe o profundo ridículo de toda essa discussão.
Mas, desta vez, o meu "gancho" é um pouco melhor. Trata-se de uma longa entrevista de Lula ao "Jornal da Tarde" de sexta passada, entrevista que vem sendo celebrada em sucessivas matérias e editoriais como o advento de um "novo Lula", lúcido, maduro, realista etc.
A entrevista contém várias observações interessantes, mas o que causou sensação foram os comentários sobre a "globalização".
Para Lula, estamos diante de uma "globalização irreversível", que constitui "a grande mudança da economia no final do século". Segundo ele, os Estados perderam importância na economia mundial e são "subservientes" às grandes corporações.
Aparentemente, essa questão tem sido objeto de grande polêmica no âmbito da esquerda. Há pouco tempo, um jornal de esquerda me fez a mesma pergunta: "A globalização é ou não é irreversível?" Fiquei atônito. Como responder a uma pergunta dessas sem ofender o entrevistador?
Eis a razão da minha perplexidade: como pode ser reversível ou irreversível algo que, a rigor, nem sequer existe?
Como se sabe, Lula não é nenhum idiota. Ao contrário, é uma inteligência privilegiada. Mas quem não presta homenagem a certos preconceitos e se recusa a fazer concessões ao blablablá reinante não sobrevive politicamente. O político que tenta se opor ao avanço da ignorância acaba numa solidão profunda e irrecuperável.
Se desse a resposta correta -"Globalização? Não sei, nunca vi"-, Lula seria considerado desatualizado. Teria menos cobertura de imprensa do que um cachorro atropelado.
Como dizia Nelson Rodrigues, no mundo de hoje, ninguém faz nada sem o apoio dos cretinos de ambos os sexos. Sem esse apoio, o sujeito não existe, simplesmente não existe. E, para sobreviver, o político, o santo ou herói precisa imitar o idiota.
Não pensem vocês que estou aqui fazendo exageros polêmicos. Todas as análises competentes da economia internacional fazem gato e sapato da ideologia da globalização.
Daqui a alguns anos, quando essa literatura chegar até nós, o brasileiro vai descobrir, entre surpreso e indignado, que foi vítima de uma tremenda farsa e que o processo de internacionalização em curso nas últimas décadas não tem nem o alcance, nem a novidade, nem a irreversibilidade que a ele se atribuem.
Em livro recente, o conhecido economista americano Paul Krugman registra, por exemplo, que antes da Primeira Guerra Mundial os investimentos da Grã-Bretanha no exterior eram maiores do que o estoque de investimento doméstico, um recorde do qual nenhum dos principais países sequer se aproximou desde então.
Em 1993, os EUA gastaram 11% da sua renda com importações. O dado correspondente era 8% em 1890. Um aumento bastante modesto, observa Krugman, especialmente quando se considera que os EUA eram muito mais protecionistas no final do século passado.
Outros países eram ainda mais abertos. A Grã-Bretanha, por exemplo, exportava o equivalente a mais de 40% do PIB nos anos 50 do século 19, mais do que exporta hoje.
Se isso é verdade, por que é que se imagina que o processo recente de internacionalização é algo inédito?
Uma das razões está no fato de que entre 1914 e 1945, as guerras mundiais, o nacionalismo e o protecionismo destruíram a economia internacionalizada da "belle époque", acontecimento que bem poderia merecer alguma consideração da parte dos crentes na irreversibilidade dos processos históricos.
Outro dado pouco conhecido e surpreendente, também lembrado por Krugman, é que a participação do comércio exterior na produção mundial só recuperou o nível de 1913 por volta de 1970.
E ainda mais impressionante: nos anos anteriores à Primeira Guerra, os fluxos internacionais líquidos de capital (em contraposição a operações financeiras complexas, que não financiam o investimento real) correspondiam a uma parcela consideravelmente maior da poupança mundial do que nos anos recentes.
Também a migração internacional era maior numa época que construiu, inclusive, uma Estátua da Liberdade para dar as boas-vindas aos imigrantes.
Um contraste notável com a economia "global" e "sem fronteiras" de hoje, em que os imigrantes são perseguidos pela polícia, como aconteceu recentemente em Paris, quando as autoridades francesas chegaram ao ponto de mandar arrombar as portas de uma igreja para enjaular algumas dezenas de imigrantes africanos indesejados.
Em suma, toda essa conversa sobre "globalização" é uma gigantesca empulhação. Faz parte de um processo maior pelo qual alguns países, entre os quais o Brasil, estão sendo levados a se alienar completamente da condução do seu destino, como declarou o geógrafo Milton Santos em entrevista ao caderno Mais!, domingo último.
Nessa entrevista, Santos disse tudo. "Ninguém sabe exatamente", observou, "o que significa o tal mercado global, o que significa competitividade. São palavras extremamente fortes, porque repetidas muito barulhentamente pelas mídias, mas que não têm conteúdo".
E arrematou: "Esse processo de entrega total, de recusa a ter um destino nacional passou a ser algo tão grosseiramente imposto aos países que todas as pessoas que não pensam igual teriam que ser suprimidas."

E-mail: pnbjr@ibm.net

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