São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 1996
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Futebol enriquece a língua e a cultura do país

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já se criticou, com muita razão, a proliferação de chavões e frases-feitas na chamada crônica esportiva.
Um locutor dado aos floreios retóricos, como o veterano Fiori Gigliotti, já foi vítima de paródias impiedosas por seus próprios colegas de ofício (quem não se lembra da "Difusora de Camanducaia", quadro do "Show de Rádio" da velha Jovem Pan?).
Mas há que reconhecer o outro lado da questão: o futebol deve muito de sua poesia à linguagem que se foi criando ao seu redor, ao repertório de imagens e metáforas que lhe dão um lugar especial na cultura popular brasileira.
Pouca gente pára para pensar na riqueza semântica contida na mera locução de uma partida ou na mais banal conversa de bar sobre a rodada do fim-de-semana.
Pela magia das palavras, num campo gramado em que só há atletas correndo atrás de uma bola surgem de repente folhas secas, chapéus, meias-luas, carrinhos, bicicletas, chaleiras, lençóis, pontes, chuveiros, balões, peixinhos.
O mais bonito é pensar que essa profusão imagética não é obra de nenhum catedrático, de nenhum poeta iluminado, mas fruto de uma elaboração anônima e coletiva, de um século de paixão pelo futebol.
Interessante também é notar como a origem inglesa do esporte -e do vocabulário que o nomeia- foi sendo antropofagicamente digerida pela fala brasileira.
Tarefa divertida é rastrear esse processo em algumas palavras. "Chute", por exemplo, que veio de "shoot", frutificou em "chutar", "chuteira", "chutão" e assim por diante.
"Beque" (do inglês "back") deu origem a "becão", "beque de fazenda", "beque de espera". O próprio "gol" ("goal") gerou "golzinho", "goleiro", "golaço".
Com nostalgia de tempos menos bárbaros, podemos lembrar de velhos locutores e comentaristas que persistiam no uso, com um sabor todo especial, dos termos ingleses originais.
Hoje isso é raro, mas quem tem mais de 30 anos deve ter ouvido muitas bolas serem defendidas pelo "goal-keeper", atacantes flagrados em "off side", zagueiros cometendo "hands".
No interior a coisa era ainda mais divertida: torcedores de província diziam que o "golquipa" tinha botado a bola para "córni", outros contestavam que tinha sido o "arf" ("half") que tinha feito "penár".
Isso tudo sem falar dos locutores que marcaram época criando imagens e bordões particulares, como o "arrasta a sandália" de Osmar Santos, ou o "barrrrbante" de Geraldo José de Almeida, ou ainda o "crepúsculo de jogo", do próprio Fiori Gigliotti.
E sem falar também de poetas como João Cabral de Melo Neto e compositores populares como Chico Buarque e Jorge Benjor, que souberam cantar a beleza plástica e dramática do futebol.
Em suma, o futebol tem contribuído decisivamente para o enriquecimento cultural, estético e linguístico do país.
Esperemos que esse patrimônio não seja vitimado pelo processo geral de embrutecimento da língua -e da vida- que estamos sofrendo.

Matinas Suzuki Jr., que escreve nesta coluna às terças, quintas e sábados, está em férias

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