São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 1996
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A vida luxuosa da imprensa internacional de outrora

DAVID DREW ZINGG
EM SÃO PAULO

É a semana da nostalgia no bistrô do tio Dave.
Acabo de receber pelo correio um pacote enviado por meu amigo Art Buchwald.
Para você aí do fundão da classe, esclareço que Mr. Buchwald escreve uma coluna famosa no "International Herald Tribune" de Paris.
O "Tribune" de Paris, por sua vez, vende a coluna de Buchwald a centenas de outros jornais de língua inglesa espalhados pelo mundo.
Sua coluna de humor é tão amplamente reproduzida que é difícil o sujeito se sentar em algum banheiro tipo "casinha" em algum lugar no meio do mato sem arrancar um pedaço de jornal contendo a foto de Buchwald.
Art Buchwald e suas piadas são tão amplamente lidos e conhecidos que ele foi batizado de "Rei dos Colunistas". Art é mais velho do que meu herói, Dave Barry, que, por essa razão, adota outro título -"O Homem Mais Engraçado da Gringolândia".
Surpreendentemente, o pacote não estourou na minha cara quando o abri, como os "presentinhos" enviados por aquele outro humorista amargo que é o Unabomber.
Na verdade, estourou no meu coração. Isso porque conheço Buchwald desde aqueles tempos memoráveis em Paris, pouco depois que servimos a sobremesa de Hitler, por assim dizer.
Art vinha de uma parte de Nova York conhecida como Queens. Ele usou sua "chutzpah" (ousadia corajosa) judia para se tornar o americano favorito de todo mundo em Paris.
Na condição de colunista, entrou de penetra em bailes à fantasia em Veneza, caçou morcegos em Sussex, na Inglaterra, imitou Ernest Hemingway na África e jantou com chefões da Máfia em Nápoles, na Itália.
Buchwald era o cronista das manhas e manias do "jet set" internacional. Em sua coluna, dava ótimos conselhos aos Joõezinhos deste mundo sobre aonde ir e onde comer, baseado principalmente na experiência culinária que tivera na cantina do U.S. Marine Corps, os fuzileiros navais dos EUA.
Estive com Art em Paris nos anos 50. Como ele, eu já havia estado na cidade durante a guerra. Voltei para casa, me casei e estava em Paris outra vez, trabalhando como editor-sênior da revista "Look".
Certa noite eu estava numa festa na casa de Janet Flanner. Janet escrevia uma carta "occasionel" desde Paris para a revista "New Yorker", de Harold Ross, e atuava como mãezona oficial dos gringos que viviam em Paris, trabalhando na indústria da atiração de palavras.
Em sua casa, Janet recebia todos que sua revista enviava a Paris e também convidava alguns de nós, gente de fora.
Graças à generosidade dela, a moçada da qual eu fazia parte pôde conhecer alguns de seus heróis. Ela não parava de apresentá-los a nós, em sua suíte no hotel Continental. Só os melhores apareciam -grandes talentos como James Thurber, A.J. Liebling, E.B. White e S.J. Perelman.
Jim Thurber, que era cego, ficou amigo de Art Buchwald, que certa vez lhe perguntou como era ser cego.
Thurber respondeu: "Agora está melhor. Durante muito tempo as únicas imagens que apareciam na minha cabeça eram de Herbert Hoover (presidente republicano norte-americano que governou o país na época da Grande Depressão).
Thurber era uma ameaça ambulante à mobília cara do hotel francês onde Flanner vivia. Era fumante e, por ser cego, tinha o hábito de simplesmente apagar o cigarro em cima de qualquer objeto que porventura estivesse a sua frente.
Buchwald ficava seguindo o escritor cego, com um cinzeiro na mão. Quando percebia que Thurber estava prestes a deixar uma cicatriz indelével numa escrivaninha Luis 14, Art colocava o cinzeiro à frente, como o jogador de beisebol que apanha as bolas e sua luva.
A própria Janet Flanner era uma lenda. Ela assinava suas cartas à "New Yorker" com o pseudônimo Genet.
Ela estava vivendo em Paris quando, em 1925, Harold Ross comentou: "Quero saber o que os franceses acham que está acontecendo na França -não o que os americanos acham". Durante décadas, Flanner enviou exatamente essas informações à revista em sua reportagem quinzenal de Paris.
Quando Art Buchwald e eu a conhecemos, depois da guerra, Flanner fumava compulsivamente, vivia com uma echarpe em volta do pescoço e se parecia com a irmã gêmea de T.S. Eliot. Ela conhecia, ou tinha conhecido, todas as pessoas que tinham algum tipo de importância na Cidade-Luz.
Graças a "Genet", pude conhecer o verdadeiro Genet. Também por meio dela, acabei conhecendo Georges Bracque, Helena Rubinstein e Joan Miró.
Flanner nos fazia subir até seus aposentos e nos contava histórias das conversas que mantinha com figuras famosas, como a escritora francesa Colette, que se indagava se sua amiga deveria comprar um dálmata.
"Naquele sotaque borgonhês típico que tem, Colette me disse: 'Um cão que se contenta em andar entre as rodas traseiras de uma carruagem é um idiota'."
Todo mundo ia a Paris nos anos 50.
Buchwald trabalhava no prédio do "Herald Tribune", que ficava pertinho da avenida Champs-Elysée, no nº 21, rue de Berri.
O "Tribune" era uma das grandes atrações turísticas para quem vinha de fora conhecer a capital francesa. Eu frequentemente me encontrava com Buchwald no próprio jornal, depois do jantar, quando ele fechava sua coluna.
Muitas vezes ele estava ao lado de alguma celebridade americana em visita a Paris, como Gene Kelly ou Humphrey Bogart.
Nós da imprensa internacional levávamos uma vida bastante luxuosa. Os repórteres americanos e britânicos usávamos todos os mesmos "trenchcoats" da Burberry. Diferíamos tanto uns dos outros quanto pãezinhos de queijo recém-saídos do forno.
Nossos jornais e revistas nos pagavam suficiente para vivermos bem no exterior, porque as coisas custavam menos naquela época e porque os jornais achavam que éramos bons e que sabíamos do que estávamos falando.
Era uma época instrutiva para aprendermos o negócio do jornalismo.
Tio Dave aprendeu com Art Buchwald a importância de tomar notas escritas num antiquado bloquinho de anotações de repórter.
Dois advogados do senador Joseph McCarthy apareceram em Paris, investigando comunistas no Departamento de Estado da Gringolândia, e a imprensa estava doida para falar com eles.
Art era o orgulhoso proprietário de um gravador alemão modernoso, "do tipo usado por espiões", disse ele. O gravador podia ser escondido por baixo do casaco dele, como uma arma escondida.
"Vocês não vão precisar tomar notas. É só me arrumar um lugar pertinho deles. Vamos gravar tudo que esses filhos da p... disserem, de tal modo que eles não vão poder negar que disseram tais e tais coisas comprometedoras."
A coletiva de imprensa foi marcada pelo tom acrimonioso, e os advogados mostraram a todos quão assustador pode ser um par de armas anticomunistas engatilhadas.
Finda a coletiva, saímos correndo para o hotel Crillon. Buchwald tirou o gravador da sua capa e apertou o botão. A fita começou a rolar e emitiu um som de "SCREEEEEECH!"

Tradução de Clara Allain.

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