São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 1996
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Coronelismo pós-moderno

BERENICE MATUCK

A eleição, processo de concretização máxima do exercício da cidadania, deve ter como norte a lisura e transparência em todo o seu transcurso e estar infensa às ingerências, principalmente do poder político e econômico, refletindo a vontade real dos eleitores. O objetivo é preservar a liberdade consciente de voto e a igualdade fundamental entre os candidatos.
As regras que disciplinam a propaganda eleitoral visam exatamente esse objetivo: garantir que o direito de voto seja exercido da forma mais livre e consciente possível, preservada a igualdade entre os candidatos.
O que se verifica, entretanto, é que as leis eleitorais, sempre transitórias ou de ocasião, visam, frequentemente, os interesses daqueles que as editam. A legislação é manipulada, para que possam se perpetuar no poder, e tal perpetuação, muitas vezes, é feita mediante o abuso de poder político e econômico.
Exemplo vivo dessa afirmação é a existência, em toda a legislação, de muitas proibições sem sanção correspondente. Ora, vedar determinada conduta sem cominar pena para quem a pratique significa deixar os aplicadores da lei sem meios para exigir o seu cumprimento.
Estamos muito longe do modelo ideal de processo eleitoral. Caminha-se na evolução legislativa a passos lentos e descompassados, ao talante dos donos do poder, que, em vez de substituir um dispositivo legal apenas para aperfeiçoá-lo, insistem em modificá-lo para manter seus privilégios.
Por outro lado, promotores e juízes, que exercem também transitoriamente a função eleitoral, se apegam muitas vezes ao formalismo. Este só beneficia os atuais titulares de cargos políticos, que abusam de seu poder, dominando redutos eleitorais como se fossem verdadeiros coronéis da República Velha. Nada fazem para aperfeiçoar o Estado Democrático de Direito, e quem perde com isso é o povo, legítimo destinatário das leis.
Mas não é só. No controle da propaganda, por exemplo, que só pode ser feita nos termos do que dispõe o artigo 242 do Código Eleitoral, falta ousadia. O Judiciário pode fazer muito para moralizá-la, evitando que o uso abusivo dos meios publicitários faça instalar no eleitor estados anímicos provocadores de reação emocional ou passional no exercício do voto.
Quanto ao abuso do poder econômico e político, a sociedade, lamentavelmente, não se organiza no sentido de denunciar os maus políticos. Estes se aproveitam da falta de cidadania, da ignorância e da miséria. Demagogia é palavra antiga, mas de uso cada vez mais atual. Se no interior ainda se trocam galinhas por votos, nos grandes centros urbanos, como São Paulo, votos são trocados por outros tipos de benesses, mais características da cidade grande.
É certo que o administrador da coisa pública, muitas vezes com interesses no processo eleitoral, deveria ter limitações mais claras para evitar o abuso.
Mas, mesmo dentro dos limites da legislação que temos, o juiz e o promotor podem ser mais arrojados quando se trata de apurar os abusos que geram penas políticas como a inelegibilidade, a perda do mandato e a cassação do registro de candidato.
A lei existe e tem de ser cumprida. Falta vontade de intervenção "política" dos referidos agentes públicos, na acepção mais nobre da palavra. A preservação da democracia na "pólis" é função institucional do Ministério Público, assegurada pela Constituição Federal.
Na minha função, tenho visto que muita coisa pode ser feita. Cabe ao promotor eleitoral: a) representar em casos de transgressão às regras da propaganda; b) representar por abuso do poder de autoridade, de poder econômico e de utilização indevida de veículos e meios de comunicação social; c) atuar como fiscal da lei, dando parecer nos dois casos já referidos; d) orientar a apuração e oferecer denúncia relativamente aos crimes eleitorais.
Por fim, é bom lembrar que as atividades do promotor eleitoral, nos casos de representações por abuso de poder político (artigo 22 da lei complementar 64/90), não se esgotam nos processos a seu cargo. O Ministério Público tem órgãos encarregados de propor ações civis públicas objetivando obrigar o mau administrador a devolver aos cofres públicos o que deles indevidamente retirou, em razão do abuso de poder que cometeu. A comunicação para que sejam tomadas providências dessa ordem deve ser feita.

Berenice Maria Aparecida Matuck, 40, é promotora de Justiça Eleitoral de São Paulo e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.

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