São Paulo, sexta-feira, 18 de outubro de 1996
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Voz regenera passado nazista de Elizabeth Schwarzkopf

Cantora lírica era líder juvenil e favorita de Goebbels

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Existe um reino onde tudo é puro...", ela canta, em tons puríssimos, numa ária de "Ariadne auf Naxos" de Strauss. Mas a palavra "puro", no caso, é o bastante para nos dar um frio na espinha.
Seu número de inscrição no partido nazista era 7.548.960. Ainda na escola, ela foi líder, também, de uma organização juvenil do partido. Durante a guerra, cantava para os oficiais SS, no fronte oriental. Favorita de Goebbels, foi protagonista de pelo menos cinco filmes encomendados por ele. Num deles, canta um "lied" de Schumann na sala de estar, enquanto um criado observa, pela janela, a passagem de aviões inimigos.
Aos 80 anos, vivendo uma vida reservada na Suíça, Elisabeth Schwarzkopf vem sendo alvo, recentemente, de grandes homenagens. A EMI lançou uma caixa com três discos, "The Elisabeth Schwarzkopf Songbook", com algumas de suas melhores interpretações de "lieder", escolhidas pela própria cantora. Também na série "Diva", há um CD dedicado à insuperável intérprete das óperas de Richard Strauss, Wagner e Mozart.
Uma gravação de 1956 de "Der Rosenkavalier" de Strauss (sobre quem, aliás, também pesam graves suspeitas), regida por Herbert von Karajan (de cujas ligações com o nazismo ninguém tem a menor dúvida) foi remasterizada sob supervisão de Schwarzkopf. Integrando a série "Salzburger Festspiele", que reúne memoráveis gravações ao vivo do festival de Salzburgo (outro lugar problemático), há um CD de canções de Hugo Wolff, num recital de 1957, onde ela canta acompanhada pelo pianista Gerald Moore. E um documentário em vídeo, "Elisabeth Schwarzkopf: A Self-Portrait", completa o pacote dessa que é, por consenso, uma das maiores cantoras do século.
A contrapartida de tantas glórias são as revelações inoportunas do musicólogo Alan Jefferson, em sua biografia da cantora (publicada pela Northeastern University Press).
Seu casamento com o produtor da EMI, Walter Legge -um judeu inglês, ao que parece-, seu complicado processo de "des-nazificação" no pós-guerra, seu prolongado exílio dos palcos americanos, sua personalidade brutesca em "master-classes" que fazem Maria Callas parecer uma senhora cordial: tudo é assunto de uma biografia que traz as questões políticas e humanas mais delicadas de um século nada delicado.
O caso Schwarzkopf é um problema, também, para os musicólogos em geral e judeus, em particular, como é o caso de Wayne Koestenbaum, nome de ponta da nova "musicologia gay", autor de um livro muito citado, "The Queen's Throat", e mais recentemente, de um ensaio sobre a cantora na revista "New Yorker". Será moralmente honesto escutar essa voz puríssima, quando se tem consciência das conotações aberratórias da palavra?
Não sei se há uma resposta política ou filosófica definitiva para isolar a voz da música da voz da cantora. Seria uma ironia fácil demais ver a líder juvenil nazista reconciliada, agora, pelas vias da canção, com seus ouvintes judeus. Ao que parece, há mais ironias e mais mentiras na história de Schwarzkopf do que se poderia imaginar. Talvez nenhuma delas seja mais definitiva do que a ironia dos deuses, mestres de contraponto e paradoxo, que consagraram a essa pura voz ariana, o rouxinol nazista, um nome inalienável e imortal, Schwarzkopf: "Cabeçadenegro".

CD: Hugo Wolf. Lieder Recital
Artistas: Elisabeth Schwarzkopf, soprano, Gerald Moore, piano
Gravadora: EMI, série "Salzburger Festpiele"
CD: Elisabeth Schwarzkopf
Artista: Elisabeth Schwarzkopf. Diversas orquestras, regidas por karajan, Pritchard, Giulini e outros
Gravadora: EMI

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