São Paulo, sexta-feira, 18 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As TVs pagas e o modo de vida dos lapões na Lapônia

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Mais por necessidade profissional do que por prazer ou curiosidade pessoal, obriguei-me a assinar as duas redes de TV pagas atualmente disponíveis no mercado. Como sou ruim de conta e alguns canais são comuns às duas empresas, não sei ao certo de quantos disponho para me informar sobre o tempo que fará amanhã. E, mesmo se soubesse, não daria fé neles, preferindo ver de corpo presente se estará chovendo ou fazendo sol.
Uns pelos outros, conseguem ser mais ou menos os mesmos, com exceção de um canal que anuncia um terço bizantino -do qual nunca participei- e outro dedicado ao turfe, esporte que nunca me entusiasmou nem como praticante, nem como assistente.
Li não sei onde que ainda estamos no tempo das cavernas em matéria de TV. Ainda bem. Não estou disposto a esperar outros 8 mil anos para chegar à Antiguidade clássica, ao nascimento do Cristo virtual, à Idade Média, à Reforma, aos tempos modernos e pós-modernos da eletrônica. Fico mesmo pelas cavernas e acho que já é suficiente para o meu apetite e exagerado para o meu gosto.
Outro dia, escandalizei a moça da loja onde comprei aquelas pilhas magrinhas que fazem funcionar os controles remotos. Comprei 50 delas e a moça pensou que eu fosse revendê-las. Expliquei que as uso em demasia, dificilmente permaneço num canal mais de meio minuto de cada vez. E é com o alívio, a beatitude do dever cumprido que, em determinado momento, dou um basta e fecho aquilo que chamam de "janela aberta sobre o mundo". Desligo o aparelho como se desligasse um liquidificador -e fico encantado com o silêncio que retorna ao meu mundo e me envolve com seus dedos de nada.
Para maior segurança, ainda espero aquela claridade tênue e azulada substituir a última cara que ali estava, geralmente o locutor que num espanhol cantado me anuncia o índice da bolsa em Tóquio ou o resultado de um jogo de beisebol na Austrália. São informações que não ouso desdenhar, mas, sinceramente, de escassa valia para um sujeito que nasceu em Lins de Vasconcelos, RJ, e mora na Lagoa, igualmente RJ.
Quando não é um cara de fala espanhola, é uma loura que pela enésima vez naquela noite me conta como foi feita a Golden Gate ou como vivem os lapões em não sei que parte da Lapônia.
Bem, há os filmes, os "making of", as mesas redondas -que os cenógrafos de tempos em tempos alteram o desenho, de forma que a mesa deixa de ser redonda e não chega nem a ser mesa. O desfile de opiniões é comovente, mas nada me comove tanto como o sujeito que me ensina a cortar pepinos e tomates com um troço que, na opinião dele, é a última conquista do engenho humano.
Os filmes merecem um capítulo especial, ou mereceriam, se acaso os assistisse do começo ao fim. Se decido acompanhar um deles, fico sem saber por que aquele homem parrudo matou a mulher boazuda. E, se pego algum ainda nos letreiros iniciais, mudo de canal ao primeiro espirro de sangue -evento que geralmente acontece logo nos primeiros minutos.
Os "making of" podiam ser uma novidade, mas se repetem com tal insistência que nem a Demi Moore com aquele corpão que Deus e a malhação lhe deram consegue me emocionar -e olha que eu curto essas coisas.
Pior mesmo é quando intérpretes de um filme falam sobre a emoção de trabalhar com aquele diretor -ou vice-versa. São todos geniais, reciprocamente se elogiam. E as cenas que ilustram o resultado de tamanha genialidade ou é uma corrida alucinada de carros, ou uma cena de cama -na qual, em princípio, somos também bons nisso.
O diabo é que, com certa insistência, deparo com rostos de amigos que ali estão vendendo seu próprio peixe ou ajudando outros amigos a vender o mesmo peixe.
Noite dessas, já estava mais para lá, entupido por uma vasta digressão sobre os rumos da economia mundial, os males do fumo e da carne vermelha, quando adentra na tal janela aberta sobre o mundo a doce figura de um amigo. Em tom definitivo, ele declara que o populismo latino-americano foi enterrado nas últimas eleições.
Solidário com o amigo, companheiro de mil lances comuns, ouço-o edificado e mais não me edifico, porque, a seu lado, um desses políticos que os colunistas chamam de "prócer" pronto concorda com ele. Conheço os dois, o jornalista e o político. Gostaria de também concordar com o meu companheiro de infância, de primeira comunhão, de peladas na areia. Ele está bem de vida, não precisa de nada, mas acho que precisa de óculos. Impossível que não enxergasse a seu lado o "prócer" recém-neoliberal, entusiasmadíssimo, prontamente confirmando que o populismo latino-americano está sepultado.
São muitos os filmes de terror nesses canais pagos e não pagos. Mas nenhuma dessas redes, pelo menos até agora, deu-se à sofisticação de contratar jornalistas de carne e osso para ficar batendo papo, alta madrugada, com um fantasma, que, na opinião de ambos, devia estar sepultado.

Texto Anterior: A Inglaterra que vive
Próximo Texto: Karnak troca 'salada russa' por macarrão
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.