São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
Próximo Texto | Índice

Farrakhan quer formar partido negro

JOHN F. KENNEDY JR.
DA "GEORGE"

O pastor Louis Farrakhan, representante nacional da Nação do Islã, encontra-se em situação difícil. Ele é um líder religioso e o único líder negro nos EUA capaz de reunir quase 1 milhão de homens numa marcha em Washington.
Se o pastor despir-se de sua aura de perigo e mistério, será que vai continuar sendo tão cativante e poderoso quanto antes? Com essa dúvida, fui visitá-lo em Chicago.
Louis Eugene Walcott -nome de batismo- nasceu no Bronx (Nova York), em 1933, e passou sua infância em Roxbury, Massachusetts (Costa Leste).
Apesar de ter se diplomado na escola secundária e de ser um violinista de talento, "Gene" Walcott optou por não fez uso desses talentos e tornou-se um bem-sucedido cantor de calipso, conhecido simplesmente como "O Sedutor".
Em 1955, quando se apresentava numa boate de Chicago, alguns de seus amigos convenceram "O Sedutor" a assistir a um discurso de Elijah Muhammad, o patriarca da Nação do Islã.
Farrakhan ficou impressionado, mas sua conversão só se deu meses mais tarde, quando foi ouvir um discurso do protegido de Muhammad, Malcolm X.
Em 1977, Louis Farrakhan (o nome lhe fora dado por Elijah Muhammad) se tornou o líder da Nação do Islã, tendo superado as desconfianças de que teria sido cúmplice no assassinato de Malcolm X.
Quando o pastor conseguiu organizar a Marcha de Um Milhão de Homens, em outubro de 1995, o fato calou muitos críticos que, até então, não estavam convencidos de sua liderança e capacidade de organização. O que chama a atenção em Louis Farrakhan, 63, é que ele transmite uma impressão de doçura, meiguice.
*
Pergunta - Por que o sr. rompeu com a tradição da Nação do Islã envolvendo-se na campanha presidencial de Jesse Jackson em 1984 e organizando a Marcha de Um Milhão de Homens? Por que o sr. decidiu misturar religião com política?
Farrakhan - Tudo o que estou procurando fazer se baseia na minha compreensão de Elijah Muhammad e do que ele desejava. Durante o tempo que passou entre nós, ele nos conservou fora da política, mas nos deixou alguns sinais, começou a nos dizer para elegermos nossos próprios candidatos.
Pergunta - Mas Jesse Jackson não endossou as prioridades da Nação do Islã.
Farrakhan - O reverendo Jackson deu um passo muito ousado em 1984, quando declarou que queria ser presidente. Esse esforço corajoso libertou as mentes de incontáveis negros, possibilitando-os a pensar além da quadra de basquete, do ringue de boxe e do palco.
Pergunta - Qual é seu eleitorado?
Farrakhan - (risos)Essa é uma pergunta fantástica. Sabe, durante uns 30 anos, mais ou menos, eu teria dito que meu eleitorado era inteiramente negro.
Pergunta - Então os brancos fazem parte do seu eleitorado?
Farrakhan - É muito possível.
Pergunta - Depois da marcha, a mídia repetiu o refrão de que muitos afro-americanos acreditam na mensagem de unidade e reparação, mas não subscrevem outros de seus ensinamentos.
Farrakhan - O sr. ficaria surpreso se soubesse até que ponto os negros subscrevem minha mensagem. Já tive mais de 2.000 pastores cristãos sentados a esta mesa. Quando nos despedimos, nos abraçamos. Houve até lágrimas.
Você não vê isso. Mas quando essas pessoas se vêem diante do público, ficam com tanto medo dos judeus que acham melhor não dizer o que realmente sentem em relação a Louis Farrakhan.
Pergunta - Por que traçar uma distinção no caso dos judeus? Afinal, brancos de todas as origens têm sido culpados de intolerância racial.
Farrakhan - Tomei consciência do controle desproporcional que alguns membros da comunidade judaica exercem sobre os negros. Não quero dizer que os judeus sejam os únicos que detêm controle significativo. Mas, em relação a seu número, são extremamente poderosos.
Pergunta - O sr. tem inveja dos judeus?
Farrakhan - Oh, não.
Pergunta - Quando o sr. fala no controle judeu sobre empresas negras ou em lojistas coreanos ou "sanguessugas" negros na comunidade negra, muitos brancos acham que é pura inveja.
Farrakhan - O poder é uma dádiva de Deus que impõe a quem o detém uma responsabilidade pesada. Não sou contra o fato de o povo judeu ter poder. Não se trata de inveja na comunidade negra, quando um comerciante coreano penetra nela. Não é culpa deles. É nossa culpa.
Pergunta - Por que?
Farrakhan - A maioria dos brancos tem uma língua ou base ancestral comum. Nós vivemos aqui há mais tempo do que qualquer outro povo. Mas temos o problema da divisão. Do ódio por nós mesmos. Isso nos torna ineficientes no presente e mal preparados para o futuro.
Pergunta - O problema com que os negros americanos se defrontam é interno ou externo? O problema são os brancos ou os negros?
Farrakhan - Ambos. Nem o governo nem os racistas brancos poderão impedir nosso avanço, se conseguirmos tirar nosso próprio pé do caminho. Não precisamos apenas retirar o obstáculo do nosso próprio pé, mas também precisamos decepar a mão e o pé do governo, que impede a realização das legítimas aspirações dos negros.
Pergunta - O sr. vai apoiar um dos candidatos ou partidos?
Farrakhan - Bem, eu poderia pedir a nosso povo que faça o que sua consciência manda. Mas meu próprio pensamento é que devemos procurar extrair de qualquer um dos partidos aquilo que melhor atende aos interesses da população.
Pergunta - Alguns líderes negros dizem que nenhum dos dois partidos é sensível às preocupações dos negros e recomendam que os negros se distanciem totalmente da eleição. O sr. concorda com isso?
Farrakhan - Não, acho que cabe a todos nós nos envolvermos no processo, porque todos nós somos parte do problema e da solução. Não sei se algum dia eu pediria a nosso povo que não votasse, embora eu já tenha me perguntado o que ganhamos votando.
Pergunta - Qual é a alternativa?
Farrakhan - A alternativa é criar uma terceira força que abranja os interesses legítimos de nosso povo.
Pergunta - O sr. quer dizer um terceiro partido?
Farrakhan - Uma terceira força que poderia crescer para transformar-se num terceiro partido. Acredite, um terceiro partido político teria condições de conquistar força suficiente neste país e de subtrair uma parcela significativa do poder dos democratas e republicanos.
Pergunta - O sr. já foi acusado muitas vezes de ser separatista, mas o que o sr. descreve soa um pouco diferente. O sr. tem visões distintas para negros, brancos, judeus e não-judeus?
Farrakhan - Elijah Muhammad via a separação como solução para o problema das relações entre negros e brancos. Separação, porque precisamos nos curar de 400 anos de injustiça e alienação do nosso eu. Mas atribuir o separatismo apenas a mim, ou à Nação do Islã, é uma injustiça grosseira.
Porque os verdadeiros separatistas são os próprios brancos. Vocês todos são separatistas. Nós não pedimos para vir para cá. Vocês nos trouxeram.
Mesmo depois da emancipação dos escravos, éramos separados e segregados. E foi apenas 30 anos atrás que, finalmente, pudemos frequentar as mesmas escolas.
Pergunta - Então que solução o sr. propõe?
Farrakhan - É como marido e mulher. Um diz "você abusa de mim e não vou mais aceitar esses abusos". O outro diz "já fiz o máximo que pude por você. Eu te alimento, te visto, agora vá para o inferno, você com suas queixas todas".
É o impasse criado. O que fazer? Você vai ao tribunal. Mas acho que existe uma via que ainda não experimentamos: auto-ajuda, autodesenvolvimento, amor próprio, encher nossa paisagem de empresas, nos envolvermos no governo.
Pergunta - Por que tantas outras pessoas acham que sim? O dr. Cornel West, por exemplo, dedica um capítulo inteiro de seu livro "Race Matters" (Questões de Raça ou Raça Faz Diferença - o título é um trocadilho) ao anti-semitismo negro.
Farrakhan - Acho que é arrogância por parte dos judeus me chamarem de anti-semita. Isso deve dar dinheiro para as causas judaicas.
Pergunta - Os judeus tiveram um papel especialmente visível na luta pelos direitos civis -especialmente os escritores e intelectuais judeus.
Farrakhan - Tiveram um papel muito visível e importante, é verdade. Quando os interesses judeus e negros convergem, trabalhamos juntos. Mas será que os negros acusaram os judeus de ser antinegros quando a ação afirmativa foi criticada por membros daquela comunidade?
Pergunta - Outros também a criticaram -até mesmo alguns negros.
Farrakhan - A Liga Antidifamação enviou um comunicado à Suprema Corte, contra a ação afirmativa e contra o "redistricting" (proposta de mudança dos distritos eleitorais, que em lugar de ser geograficamente definidos passariam a ser racialmente definidos). Sr. Kennedy, sua geração e a geração anterior à sua não tiveram nada a ver com a escravidão, mas o sr. tem a responsabilidade de ajudar a corrigir as injustiças feitas no passado. Os alemães estão pagando compensações aos israelenses por danos cometidos, mas ninguém fala em pagar compensações aos negros. Evoco a questão do envolvimento europeu na escravidão, do envolvimento árabe e do envolvimento judeu, sim. Pergunto a todos eles: "O que vocês vão fazer para ajudar a libertar nosso povo dessa condição -não a perpetuá-la?"

Próximo Texto: 'Fiquei emocionado com os netos de Rabin no enterro dele'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.