São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 1996
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Nobel da Paz critica diplomacia do Brasil

BEATRIZ WAGNER
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE SYDNEY

José Ramos-Horta, 47, acha que o Brasil está fazendo pouco na defesa do direito de autodeterminação de Timor Leste por ter uma posição excessivamente pragmática.
Vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1996 junto com o bispo Carlos Filipe Ximenes Belo (também militante de Timor Leste), Ramos-Horta considera que o presidente Fernando Henrique Cardoso deveria interceder junto a líderes mundiais para que eles se sensibilizem com a ocupação da região pela Indonésia.
Em entrevista exclusiva à Folha, Ramos-Horta falou sobre a sua militância, seus anos no exílio em Nova York e Sydney (Austrália) e sobre a posição da comunidade mundial de língua portuguesa em relação a Timor Leste, que foi colônia de Portugal até 1975.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
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Folha - Como o sr. recebeu o anúncio do Prêmio Nobel da Paz?
José Ramos-Horta - Fiquei completamente surpreso. Nem de longe imaginava, dado que havia muitos outros candidatos, sobretudo com a resolução de alguns conflitos muito importantes, como o da Bósnia. Parecia quase unânime que Richard Holbrooke, o mediador americano do conflito, era o favorito.
Folha - A que o sr. atribui a decisão do Comitê Nobel de premiar dois timorenses?
Ramos-Horta - A atribuição do Prêmio Nobel da Paz tem por fim também impulsionar o processo do diálogo para a paz, no sentido da resolução de conflitos. Foi o que se fez em relação à África do Sul e ao Oriente Médio.
O caso de Timor Leste, além de trágico, muito trágico, parece ser também um dos casos mais simples a ser resolvidos. Porque essa disputa envolve apenas duas partes: o povo de Timor Leste e a República da Indonésia.
Folha - Os recentes protestos em Jacarta, os mais violentos dos últimos 20 anos, podem ter tido um papel predominante na decisão do comitê?
Ramos-Horta - Julgo que sim, pelo menos em parte. Na minha interpretação, apesar da reação muito negativa e emotiva de Jacarta à atribuição do prêmio, inevitavelmente, nos próximos meses ou em dois ou três anos, vamos ver o impacto da atribuição do Nobel da Paz a Timor. Hoje não me parece que haja um único cidadão indonésio que não conheça o problema de Timor Leste, que não conheça o drama que se vive lá e que não se sinta embaraçado pela forma como o seu país, o seu governo e o seu Exército têm se comportado contra os timorenses e perante a opinião pública internacional.
Folha - Como o sr. caracterizaria a ação militar da Indonésia em Timor Leste?
Ramos-Horta - É excessiva e desnecessária. Há em Timor Leste entre 20 mil e 30 mil soldados. Pela densidade populacional, é grande.
Há ofensivas militares constantes contra a guerrilha, e a presença do Exército é também uma intimidação, um terror constante à população civil. Unidades militares estão estacionadas, vivem no meio das vilas, das aldeias.
Tortura é uma prática corrente. Há centenas e centenas de vítimas de tortura, desde o choque elétrico, de rotina, a formas mais selvagens, como cortar o corpo pouco a pouco com lâminas de barbear ou pregar os pés do preso ao chão.
Vi com meus olhos as cicatrizes de jovens refugiados em Portugal, que foram "crucificados" no chão, de madeira.
Folha - Xanana Gusmão, preso em Jacarta, é mais uma vítima do regime indonésio. Imediatamente após receber o anúncio do prêmio o sr. declarou que ele deveria ter sido o escolhido, junto ao bispo dom Ximenes Belo. Por quê?
Ramos-Horta - Disse imediatamente após receber o anúncio do prêmio que, para além da alegria do prêmio para Timor Leste, veio-me a tristeza, veio-me um incômodo enorme de não ter sido Xanana Gusmão o galardoado, porque ele é o verdadeiro líder do povo de Timor Leste.
O Comitê Nobel decidiu por outra pessoa por razões que o comitê entendeu -continuo a não entender bem.
Acredito que o comitê considerou a candidatura Xanana com muito respeito, mas deve ter pensado que, apesar de todas as suas qualidades e valores, ele está preso.
O objetivo do Prêmio Nobel da Paz, que é impulsionar a campanha para a sensibilização, no caso de Timor Leste não seria satisfeito se o prêmio fosse entregue a Xanana Gusmão, que não o poderia receber em Oslo e não poderia viajar pelo mundo afora para fazer essa campanha.
Folha - E fazendo parte do comando da luta, o senhor já recebeu ameaças de morte. O senhor tem medo de ser assassinado?
Ramos-Horta - A morte é a coisa que mais detesto. Obviamente que toda a gente receia pela minha segurança. Já recebi muitas ameaças. Ainda hoje tive uma entrevista, agora mesmo, com a polícia federal australiana, que também está preocupada e quer seguir todos os meus movimentos.
Folha - Quando e de onde vêm as ameaças de morte?
Ramos-Horta - Muitas vezes, ao longo deste ano, via Internet. Dizem que se eu continuar a campanha contra a Indonésia, até o fim de 1996, liquidam-me.
Folha - O prêmio ajuda a luta timorense e também traz dinheiro. O que pretende fazer com ele?
Ramos-Horta - Não tenho planos de guardar um cêntimo. Disse repetidamente que o prêmio foi atribuído ao povo de Timor Leste e, em coerência com isso, esse dinheiro irá para uma fundação timorense que nós vamos estabelecer em Portugal, com vistas a financiar projetos no plano diplomático e projetos humanitários em Timor Leste, como ajuda a prisioneiros com medicamentos, livros e alimentação. Esse dinheiro, ao ser destinado a uma fundação, pode e vai atrair muitos mais donativos, sobretudo em Portugal.
Folha - Parece que a situação do Timor Leste é desconhecida no Brasil. A que o senhor atribui isso?
Ramos-Horta - Julgo que os homens que fazem a política externa do Brasil, no Itamaraty, são excessivamente pragmáticos. Tiveram sempre vida fácil, vêm da elite brasileira e nunca participaram, eles próprios, em combates contra a ditadura, contra o colonialismo. Obviamente, não têm a sensibilidade de muitos outros países ou diplomatas que eu conheço.
O pragmatismo brasileiro muitas vezes é excessivo e não tem razão de ser porque um apoio firme, inequívoco ao direito do povo de Timor Leste à autodeterminação não prejudicaria as relações entre o Brasil e a Indonésia, porque a Indonésia sabe que não poderia hostilizar o Brasil.
A Indonésia não pode, não tem capacidade econômica ou política para se antagonizar com todos os países que dêem apoio a Timor, e é por isso que eu digo que é um pragmatismo excessivo.
Mas a restauração da democracia no Brasil, nos últimos anos, permitiu uma maior sensibilidade para a questão de Timor Leste. Há uma maior cobertura na imprensa, há muitos deputados interessados, a Igreja Católica brasileira tem tido um papel muito importante, muitas organizações não-governamentais estão preocupadas com Timor Leste, e o quadro mudou dramaticamente no último ano.
Tive o prazer de conhecer o presidente Fernando Henrique Cardoso na reunião inaugural da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em que ele também se juntou ao coro dos outros seis países de língua portuguesa, afirmando o direito do povo à autodeterminação. E, noutro dia, recebi uma mensagem pessoal dele, por escrito, de felicitações pelo Prêmio Nobel da Paz.
Nós temos muita fé, esperança de que o Brasil, a mais poderosa de todas as ex-colônias portuguesas, venha a solidarizar-se ativamente com a luta do povo de Timor Leste.
Para além do que, do ponto de vista do interesse de Estado, interessa ao Brasil, assim como interessa a Portugal, que haja mais um país de língua portuguesa.
Um Timor Leste independente será o único país de língua portuguesa no Extremo Oriente. E é potencialmente um país riquíssimo.
Folha - Em termos concretos, qual a importância de uma posição mais firme e mais consequente do governo brasileiro em relação a Timor Leste?
Ramos-Horta - Teria uma importância enorme porque imagine se o presidente Fernando Henrique Cardoso ficasse ele próprio sensibilizado, mobilizado, engajado, no problema de Timor Leste, como se fosse um projeto seu, pessoal, que ele acarinha... Se o presidente Fernando Henrique Cardoso quiser falar ao telefone com o presidente Clinton sobre a questão de Timor Leste, Clinton pelo menos pega no telefone.
O presidente Fernando Henrique Cardoso poderia desempenhar esse papel. Pode até fazê-lo discretamente, sem declarações para a imprensa.
Porque o que nós precisamos neste momento é que haja um líder, um estadista importante que se dedique à questão de Timor Leste e que faça disso uma missão sua, convertendo os homens e mulheres de poder.
Folha - E qual é o papel que Portugal tem desempenhado em todos estes anos em relação a Timor Leste?
Ramos-Horta - Em Timor Leste nunca houve ações hostis da população contra Portugal. As relações foram sempre singulares. Não houve guerras contra Portugal como aconteceu em Angola e Moçambique. Creio que, no futuro, num Timor Leste independente, não haverá no mundo dois países com relações tão fortes como Portugal e Timor Leste. Portugal tem se batido pelos direitos do povo de Timor Leste nos últimos anos, não apenas contra a Indonésia. Tem combatido junto à União Européia contra a intransigência dos ingleses, alemães, franceses e holandeses que não queriam fazer nada em relação a Timor Leste.
Portugal tem estado a enfrentar também a intransigência dos Estados Unidos, para não dizer do Brasil. Portanto, a luta diplomática portuguesa por Timor Leste tem sido também uma espécie de luta de Davi contra Golias, que são os seus aliados ocidentais, mas que no tocante a Timor Leste não tinham secundado Portugal.
Talvez Timor Leste poderá ser para Portugal, em relação à União Européia, o que Israel é para os Estados Unidos.
Folha - E qual é a proposta concreta de resistência, em relação à língua portuguesa, para Timor Leste?
Ramos-Horta - Defendemos a reintrodução do português como língua oficial do país porque ainda há milhares de timorenses que falam o português e porque Timor Leste simplesmente não poderia sobreviver como uma identidade específica sem o português. É o português que garante a identidade de Timor Leste, é o português que nos diferencia da região, é o português que nos permite comunicação, ligação e solidariedade com um espaço maior, que é o espaço lusófono.
Obviamente vamos desenvolver também o tétum como língua nacional, mas vai levar muitos anos porque é uma língua ainda muito rudimentar. E certamente nós vamos permitir o estudo da língua indonésia como uma língua importante nas escolas, na medida em que nós não podemos ignorar que mais de 200 milhões de pessoas falam o indonésio. Quase 200 milhões na Indonésia e perto de 20 milhões na Malásia.
Folha - Onde o senhor mora?
Ramos-Horta - Quando estou na Austrália, em Sydney, ou estou na casa de um irmão, em Liverpool, que tem sempre lá um quarto para mim. Não tenho residência própria aqui na Austrália, mas tenho um apartamento modesto em Lisboa, que comprei há menos de um ano. Não passo muito tempo nem na Austrália nem em Portugal. Distribuo meu tempo entre os Estados Unidos, Canadá, vários países europeus... Estou quase sempre viajando.
Folha - E no exílio, viajando tanto, como ficou a sua vida pessoal? O senhor já foi casado?
Ramos-Horta - Casei em 1977 com uma advogada timorense, separamo-nos há muitos anos, somos muito amigos. Tenho uma enorme admiração por ela, que é a jurista timorense mais experiente. Temos um filho que tem hoje 17 anos e é um rapaz brilhante. Tive uma outra vida conjunta, comum, não casamento formal, separamo-nos também, somos muito amigos, mas ela fartou-se das minhas frequentes ausências.
Folha - O sr. sempre se apresenta usando gravata borboleta e usa a barba no estilo "por fazer". Isto é modismo?
Ramos-Horta - A gravata eu uso quase sempre. De criança, usava o "papillon" (borboleta, em francês), depois deixei de usar durante muitos anos em Nova York. Um dia eu decidi pôr outra vez o "papillon", sem pensar muito no assunto, há mais de dez anos. E muitas vezes as pessoas dizem que a barba que uso é da moda, mas não é. É que, quando a minha barba cresce, fica muito feia e, se eu faço a barba, irrita-me a pele, então já há muitos anos que eu a corto e ficou assim.
Folha - E quais são as suas raízes?
Ramos-Horta - Eu, apesar de ter origem portuguesa -meu pai era um combatente antifascista português que morreu em Timor em 1970, foi desterrado para Timor por Salazar em 1936-, nunca vivi em Portugal, nunca estudei lá.
A minha influência é muito mais anglo-saxônica. Sou muito mais americanizado na maneira de pensar -penso em inglês e traduzo para o português-, mas as minhas raízes continuam a ser, apesar de 20 anos fora do país, muito timorenses.
Não hesito em voltar a Timor amanhã, se Timor for livre.
Não tenho saudades de Nova York, não tenho saudades de Lisboa ou da Austrália. Adapto-me facilmente a qualquer sociedade. Mas sou timorense, sobretudo.

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