São Paulo, terça-feira, 22 de outubro de 1996
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Bananas

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - O guarda apareceu à minha frente e fez sinal para que parasse. Um ceguinho, com sua bengala branca e um tabuleiro de balas, agradeceu e atravessou a rua. Estava chegando à outra calçada quando um outro carro quase o atropelou. A moça vinha distraída, não devia ter visto o guarda, desviou-se do meu carro e ia atropelando o ceguinho.
Ela recebeu a esculhambação do guarda e o olhar de reprovação que me senti autorizado a lhe dirigir. O ceguinho nem se assustou. Devia estar habituado a essas freadas bruscas. Ou, quem sabe, além de cego, podia ser surdo e não ter ouvido o barulho provocado pela freada.
O guarda liberou a pista e voltou para a sua guarita. A moça aproveitou estar ele de costas e deu-lhe uma banana. Novamente olhei para ela, reprovando-a. Em resposta, ela também me deu uma banana, mais veemente do que a primeira.
Em seguida, achando que ainda lhe faltava alguma coisa, deu uma terceira banana, para o ceguinho que começava a arrumar seu tabuleiro de balas na calçada.
Só então decidiu arrancar e seguir seu caminho. Mas o carro dela engasgou, deu um espirro esquisito e não saiu do lugar. Bem, a situação não era nova, num dos primeiros filmes de Fellini há uma cena parecida, Alberto Sordi dá uma banana para os trabalhadores que consertam a estrada, o carro em que Sordi viajava enguiça, os operários dão-lhe uma surra.
Não seria o caso. O guarda não viu a banana da moça porque estava de costas. O cego também não viu a banana dele porque devia ser cego mesmo. O único que tinha a chamada "consciência social da realidade" era eu mesmo.
No uso e gozo dessa consciência, pensei em ajudar a moça, com um simples empurrão o carro dela pegava. Ela percebeu minha intenção e sorriu, encabulada, desculpando-se pela banana. Foi então que a minha consciência social revelou-se em sua plenitude: dei-lhe uma banana e fui embora.

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