São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 1996
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Idealismo, oportunismo e insensatez

LUÍS PAULO ROSENBERG

É parte legítima do jogo democrático que indivíduos ou instituições tentem barganhar com os vários segmentos da sociedade a implantação de medidas que lhes sejam de particular interesse, sem muita preocupação com o bem-estar comum.
Desde que as moedas de troca não sejam a corrupção, o tráfico de influência ou a chantagem, todos têm o direito de divulgar e negociar a aprovação de suas idéias.
No espaço de legitimidade assim definido, entretanto, pululam arquétipos de atuações as mais diversas, dentre os quais tivemos exemplos hilariantes na última semana.
Comecemos pelos respeitáveis. São os idealistas, entram com tudo em batalhas nas quais defendem exclusivamente causas de terceiros, despojadamente.
Ou alguém tem dúvida de que, enquanto batalhavam por seus projetos, Betinho e Jatene só visavam o alívio do sofrimento dos desprovidos do Brasil?
Uma segunda categoria de participante do jogo democrático é a dos que defendem uma tese que pode até ser de interesse coletivo, mas é inegavelmente vantajosa para seus defensores. Postura tolerável: esse é o caso de FHC e a emenda pela reeleição.
Ninguém pode negar que há méritos na tese de que quatro anos é muito pouco para um executivo cumprir uma missão relevante. Dar ao povo, portanto, o direito de reelegê-lo, como no caso dos parlamentares, pode ser visto como um avanço dos direitos da cidadania.
Ainda que plenamente dentro do espírito do jogo de pressões, a situação de FHC não pode ser confundida com a anterior: se fosse o caso de idealismo, sua proposta seria de reeleição a partir do próximo presidente.
O terceiro exemplo é irritante, mas ainda legítimo. Trata-se da postura de parlamentares que não admitem a diminuição de seus privilégios, seja o de receber salários incompatíveis com as finanças públicas nacionais, seja o direito à aposentadoria lauta e precoce.
Como alegar legitimidade para quem legisla em causa própria? Simplesmente porque podemos, nas próximas eleições, punir todos os parlamentares que assim votarem, cassando-lhes a renovação dos seus mandatos.
Passemos, agora à patologia do sistema: os que advogam causas contrárias aos interesses de seus grupos.
Em primeiro lugar, as manifestações de ignorância explícita, como a das lideranças sindicais que, em encontro recente com o presidente, posicionaram-se contrariamente ao fim da obrigatoriedade dos tíquetes-refeição.
Ora, como a compra de tíquetes pelo empresário é voluntária, quem hoje já os está entregando aos seus funcionários continuará dando dinheiro para esse fim.
Como o custo para o empresário de subsidiar a alimentação do seu trabalhador cai com o fim da obrigatoriedade, ou ele poderá dar mais dinheiro com o mesmo propósito ou o preço das refeições nos restaurantes cairá, beneficiando sempre o trabalhador.
Caso o trabalhador destine o dinheiro para outro uso, ótimo: ele deve ser soberano e não terá mais que pagar um prêmio aos intermediários que hoje mercadejam os papeluchos. Defender a manutenção do status quo é, portanto, tiro no pé, burrice in natura.
Finalmente, o dogmático paleolítico, apegado sempre às mesmas teses, sem jogo de cintura, sufocando o proletariado com suas ótimas intenções. Os economistas de esquerda acabam de entrar nessa onda, desde a semana passada.
Com a divulgação dos dados decepcionantes da balança comercial em setembro e outubro, voltaram a clamar aos céus por uma maxidesvalorização.
Deixemos de lado, por um momento, a precipitação técnica que está por detrás dessa prescrição, indicando um diagnóstico falho do que se passa na economia brasileira.
Concentremo-nos no inexplicável: como economistas comprometidos com a melhoria da distribuição de renda do Brasil podem exigir uma desvalorização cambial, que aumenta a renda do exportador em detrimento do salário, torna os bens importados mais caros para as camadas de baixa renda e dá um desconto instantâneo para as multinacionais que queiram comprar empresas nacionais, ao desvalorizar todos os nossos ativos quando medidos em moeda forte?
Há vários instrumentos que podem ser mobilizados para melhorar o desempenho das exportações sem recorrer à desvalorização cambial, cujo impacto inflacionário poderá comprometer o futuro de um plano de estabilização apoiado por quase 80% dos brasileiros.
Escutar os economistas que sugerem uma máxi é o melhor caminho para a esquerda repetir o fracasso da última eleição presidencial, quando a sua alienação em relação à prioridade que o desassistido atribui à estabilidade de preços permitiu o avanço notável de FHC sobre os redutos eleitorais de Lula.

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