São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 1996
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Eu queria filmar a beleza trágica da miséria

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Meu primeiro trabalho em cinema foi com o Leon Hirszman, em 1963, como assistente de direção em um documentário no interior do Nordeste sobre fome e analfabetismo. Foi meu primeiro contato com a miséria brava. Eu já contei isso uma vez, mas repito hoje, a propósito do que falei na semana passada sobre a "política como uma estética".
Quando estávamos fundando o cinema novo, tínhamos uma profunda atração pela miséria, não apenas por nosso humanismo de esquerda. Eu tinha fascinação estética por aquele mundo descarnado, feito de ossos e caveiras.
O vazio sempre foi uma fascinação para a arte moderna, e o sertão seco tinha um rigor formal que evocava João Cabral, o "Waste Land" de Eliot e, suprema paixão minha na época, Samuel Beckett, o escritor irlandês que eu amava por seus seres mutilados, perdidos em saaras metafísicos, personagens de um "nada" que a Europa nos mandava com o "absurdismo". Tínhamos a dor da miséria, mas queríamos que a tragédia social se expressasse numa espécie de triunfo poético. Para nós, o "nada" era no Nordeste.
Cinema e verdade Andávamos com a câmera na mão pelos rasos e favelas do sertão, entrevistando camponeses. Mas, diante da câmera, surgia apenas o "pobre homem" roubado de tudo, até da consciência de sua dor. Em vez de grandes momentos dramáticos, só conseguíamos filmar vagos resmungos sobre "Deus quis assim" ou "o governo pode ajudar".
Os flagelados da seca não "cooperavam" muito com o cinema. Os miseráveis estranhavam nossa compaixão. Como o senhor de engenho, eles acham que não valem nada. Os miseráveis não sabiam que sua vida era "nosso" horror.
O filme de horror Foi então que chegamos à rua do Sol. Com esse nome grandioso, a rua do Sol não era nem rua. Era um beco sujo no fundo de uma favela, a duas horas de João Pessoa. Entramos numa casa pequena, entre porcos e crianças. E de repente tudo aconteceu. Como uma explosão de luz, tudo ao mesmo tempo, como uma máquina perfeita.
Num canto da casa, um velhinho magro e sem o braço direito tremia sentado num banco. Tinha a barba branca e a pele cor de barro, e seus olhos eram duas brasas vivas. Ele falava sem parar algo como uma música indistinta, enquanto ao fundo uma velha magra ria como uma boneca mecânica de parque de diversões.
No meio da sala de terra, crianças nuas choravam, outras riam e uma mulher nova, morena falava alto, com marcas de ferimentos nos braços, como cortes de estilhaços caídos. A mulher gritava para nós, que invadimos a casa com a câmera na mão: "Olha, olha lá no teto! Olha no teto os restos do menino! Ele explodiu e os restos dele bateu nos meus braços e foi avoando para o teto, me molhou tudo, não foi, mãe?".
E a velhinha ria, ria como bruxa de teatro infantil, e o avô sem braço tremia, e nós não entendíamos nada, e eu sentia que alguma coisa maior surgia ali na sala, e a câmera rodava: "E o menino tinha a cabeça grande desde que nasceu, e ela foi crescendo, crescendo, e ele ficava sempre deitado ali no caixotinho, e a cabeça dele foi crescendo do tamanho de uma melancia, e só os olhinhos olhava a gente, e tinha um povo que vinha ver e dizia que ele era enviado de Deus, e até que ontem foi aquele estrondo forte, juro, e quando eu olhei tava tudo molhado e até no teto tinha coisa dele grudada!".
A velha no fundo do barraco ria sem parar, as crianças pulavam de excitação: "Avoou! Avoou!". E a câmera foi pegar o rosto da velha que ria. De um alto-falante da rua começou a sair uma valsa vienense (o que fazia o "Danúbio Azul" na rua do Sol?), e o clima foi ficando um misto de arrepio de horror com precisão trágica.
Tudo compunha o quadro de perfeição: os gritos, os risos, os vôos da câmera para o teto da casa procurando pedaços de miolo, a valsa. A câmera foi para o velho que estava como que cantando uma melopéia, uma ladainha de arame, uma galáxia com som metálico, e ele apontava com o único braço para a câmera: "Retrato? Tira retrato de mim! Eu sou o bagaço do engenho!".
Ele tremia, tremia. "Eu passei por dentro da engrenagem do engenho e meu braço ficou preso lá e depois eu peguei a tremer e tremer e já estou tremendo, moço, faz 11 anos desde aquele dia em que a mula do engenho deu um arranco na roda e meu braço entrou na engrenagem e virou bagaço, e foi porque a mula deu um arranco com força e caiu morta, ainda dependurada na vara da moenda, e a mula eles levaram morta embora, e meu braço ficou lá no meio do melado e desde aí eu não tenho mais serventia. Eu não morri não sei por quê. Eu queria ir atrás do meu braço!"
E a música tocava no alto-falante agudo da rua (por que uma valsa?), e a máquina foi se fechando, o palco foi se formando, o quadro foi se formando (o quê? Durer, Grunewald?), uma massa abstrata de vertigem se formava no ar (o quê? Kandinski?), e a filha do homem chegou perto gritando: "Tira o retrato da cabeça dele lá no teto!" (Beckett, talvez?).
E a velha começou a rezar alto no fundo, e o velho gritava para nós, com voz de metal: "Vocês querem me ajudar? Por que não me matam? Me mata, pelo amor de Deus! Ela não quer me matar!". "Eu não, pai, cruz credo!", e a filha dava gargalhadas. "Me mate, seu retratista, são 11 anos sentindo dor, eu quero ir atrás do meu braço!"
Eu não estava diante da tragédia clássica, em que a morte é a "moira" temida; ali a vida era o medo máximo, ali a vida era uma morte falada. Não se tinha o medo de sair da vida; o medo era de ficar nela. O "nada" viria como alívio.
"Me mate, meu companheiro!", o velho gritava, e no fundo a velha já cantava, e a valsa metálica vinha de Viena, e estava aceso ali o drama em flor, ali surgiam Bosch, Sófocles, ali estava Shakespeare, finalmente a arte no meio da miséria!
"Oh, céus de Munch! Oh, Goya entre os telhados!" - cantei como um pequeno burguês. E saí com os olhos cheios d'água, que secaram assim que cheguei à luz da rua do Sol.
Por motivos marxistas, ("muito absurdista", disseram) a cena não foi montada no filme, mas até hoje guardo o horror puro na alma (Conrad?). Entre gargalhadas e mortes, sob um céu de Francis Bacon, a cena era Beckett puro. Os intelectuais já podem sossegar. O "nada" é no Nordeste.

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