São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 1996
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Urbanidade excessiva

ANDRÉ LARA RESENDE

Li há alguns dias que 63% da população quer sair de São Paulo. A pesquisa, se não me engano, do Instituto Gallup, mostrava que nos últimos 20 anos cresceu significativamente o número de habitantes que gostariam de se mudar. De qualquer forma, já há duas décadas mais da metade da população manifestava o desejo de abandonar a cidade. É impressionante.
Moro em São Paulo há quase 8 anos. É muito, ou pelo menos muito mais do que me parece. O tempo anda acelerado. Acho que me adaptei bem à cidade.
Nunca fui um carioca que às sextas-feiras corre invariavelmente para a ponte aérea. A cidade é rica, dinâmica, os serviços inegavelmente de melhor qualidade e as oportunidades profissionais que oferece não têm paralelo.
Sou, portanto, um carioca adaptado. Mantive o título de eleitor no Rio. Até pouco tempo os temas municipais cariocas me diziam mais respeito do que os de São Paulo. Hoje, até disso já tenho dúvidas. Mas ando tendo recaídas.
Não pretendo voltar à velha e surrada comparação entre Rio e São Paulo. O Rio também sofre dos males dos grandes centros urbanos, mas São Paulo consegue ser uma espécie de concentrado das vantagens e das desvantagens das megacidades modernas. Há carros demais, gente demais e barulho em excesso. Nenhuma novidade nisso. De certa forma a urbanidade moderna de São Paulo é até fascinante.
Tive recentemente a oportunidade de acompanhar alguns estrangeiros pela primeira vez no Brasil. A reação é surpreendente: da perplexidade ao fascínio, mas sempre favorável. O mesmo nem sempre é verdade para outras cidades, grandes ou pequenas, mais tradicionalmente associadas ao interesse turístico. Um amigo pintor, francês em primeira visita ao Brasil, ficou encantado: viu na feiúra urbana de São Paulo uma força estética intrigante e inspiradora que -embora por delicadeza tenha evitado revelar- não me pareceu ter encontrado no Rio ou em Salvador.
Mas acho que há um limite de exposição à cidade. Após algum tempo, o fascínio se esvai e os nervos ficam à flor da pele, perde-se a capacidade já não digo de amar o próximo, seria pedir demais, mas de conviver de forma civilizada.
Episódios como o assassinato a pontapés de um pai de família, diante dos pedidos de clemência da própria mulher, por três rapazes indignados com um espelho retrovisor quebrado num pequeno incidente de trânsito são o traço mais agudo de um mal abrangente: a incomunicabilidade urbana.
Tenho sido acusado de ser pouco social. Não vou ao cinema para não enfrentar os estacionamentos e as filas, fujo dos shoppings como o diabo da cruz e ando tomado de horror aos vernissages, às noites de autógrafos, às inaugurações e a toda sorte de encontro de pé, regado a vinho branco morno, onde toda comunicação é impossível e o sucesso é medido pelo número de pessoas obrigadas a ficar de fora devido à superlotação.
Precisamos de solidão e de silêncio. A leitura é um ato solitário e paradoxalmente socializante, pois aprofunda nossa interação com um universo muito além de nosso espaço físico.
Há poucos dias reagi de forma surpreendentemente agressiva e irracional à interrupção da leitura na qual procurava me concentrar. Não sei se algum dia sairei de São Paulo, mas me incluo entre os que anseiam pelo que aqui parece impossível: uma dose mínima de silêncio e a solidão.

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