São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 1996
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A responsabilidade do Congresso

JOSÉ MIGUEL VIVANCO

No último dia 20, o advogado Francisco Gilson Nogueira de Carvalho estava entrando em casa, em Macaíba, Rio Grande do Norte, quando foi atingido por uma rajada de 17 tiros de fuzil, dos quais três o atingiram, sendo um, fatal, na cabeça. A perícia mostrou que as balas são de um tipo de projétil especial, desenhado para fazer explodir a cabeça da vítima.
Havia tempos Gilson trabalhava na defesa dos direitos humanos no Rio Grande do Norte. Nos últimos dois anos, destacou-se como assistente da acusação numa série de casos de violência policial no Estado. O mais conhecido deles foi a chamada "chacina da Mãe Luíza", ocorrida em março de 1995, no bairro de Mãe Luíza, em Natal, com duas pessoas mortas e quatro feridas. O policial civil Jorge Fernandes, o "Jorge Abafador", teve a participação comprovada por várias testemunhas.
Após a cobertura dada à chacina, surgiram denúncias de outras dezenas de casos com envolvimento da Polícia Civil. Foi criada uma comissão especial de promotores no Ministério Público para apurar esses crimes, que concluiu que existia no Estado um grupo de extermínio conhecido como "Meninos de Ouro".
A comissão, que ouviu mais de cem depoimentos, concluiu que quem dirige o grupo é o próprio secretário-adjunto de segurança pública, Maurílio de Medeiros. Apesar da pressão nacional e internacional e, mais importante ainda, a despeito do trabalho heróico dos grupos locais do Rio Grande do Norte, como o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, Maurílio se mantém no cargo.
"Jorge Abafador", membro dos "Meninos de Ouro", foi detido e teve prisão preventiva decretada por causa de seis processos, por 13 mortes. Mas tem sido visto nos bares de Natal tomando cerveja e ameaçando testemunhas. Não é de surpreender, então, que, no primeiro semestre deste ano, no julgamento pelo assassinato de Luís Carlos Nascimento com um tiro na nuca, à queima-roupa, tenha sido absolvido.
No mundo inteiro, uma das formas mais comuns de calar o clamor pela defesa da dignidade humana e pelo respeito aos direitos básicos são as ameaças e os atentados contra os defensores dos direitos humanos. A cada ano, o relatório global da Human Rights Watch, por exemplo, denuncia dezenas de casos do mundo inteiro nos quais defensores dos direitos humanos sofrem ataques.
Muitas vezes, esses ataques fazem parte da política do governo: outras vezes, são agentes atuando à margem da lei que cometem essas violências.
Nas duas situações, os ataques graves só continuam quando os violadores contam com a tolerância ou a omissão das autoridades. No Rio Grande do Norte, essa tolerância chega a ser um aval quase total à política violenta do secretário-adjunto Maurílio Pinto de Medeiros e dos "Meninos de Ouro".
Ao mesmo tempo, o governo federal tem demonstrado algum interesse em apurar esse crime. O próprio governador do Estado, sob a pressão da sociedade civil e da imprensa, teve que reconhecer que os agentes policiais do Estado não têm condições de apurar esse caso independentemente. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, órgão do Ministério da Justiça, tem se manifestado a favor de uma apuração.
Mas, mesmo havendo uma investigação pelas autoridades federais, é exclusivamente da competência estadual a elaboração do inquérito policial e o julgamento pela Justiça. A possibilidade de quebrar o ciclo da impunidade depende de uma força independente agir diretamente na apuração e no julgamento do caso.
Há quase seis meses, o governo federal lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos, um conjunto histórico de medidas, onde consta a federalização dos crimes contra os direitos humanos. Infelizmente, apesar do tempo passado, o Congresso Nacional nada fez para aprovar essa medida (ou, de fato, mais de 200 outras medidas que o programa contempla). Portanto, as autoridades federais ficam impossibilitadas de fazer mais do que pressões políticas e divulgar pesquisas sobre casos de violações aos direitos humanos.
Fora do Brasil, esse caso será visto como mais um exemplo dos abusos contra os direitos humanos e aqueles que têm a coragem de defendê-los. E mais: o caso será visto não só como um exemplo da má vontade das autoridades do Estado do Rio Grande do Norte, comprovadamente demonstrada nesses últimos anos. Será visto, e com razão, como mais uma demonstração da falta de vontade política do Congresso Nacional de buscar soluções reais para os problemas graves na área de direitos humanos no Brasil.

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