São Paulo, quinta-feira, 31 de outubro de 1996
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Dois na gaveta

MOACYR SCLIAR

Senhor administrador do cemitério: depois de muito vacilar, resolvi dirigir-me a V.S. para tratar de um assunto triste e ao mesmo tempo delicado. Trata-se, como V.S. bem pode imaginar, de falecimento.
Morrer, senhor administrador, e o senhor me perdoará o trocadilho, está pela hora da morte -como se pode ver pelas taxas que os cemitérios estão cobrando. Dizem que nada mais inevitável do que taxas e a morte, e, quando se trata de taxas junto com morte, a inevitabilidade chega ao nível de destino implacável. É portanto com muito receio, mas não menor esperança que me dirijo a V.S. O administrador do cemitério é, afinal, a última instância antes do Juízo Final.
Nossa família tem, senhor administrador, um jazigo com quatro gavetas. Quatro parecia um número razoável quando o adquirimos, mas não podíamos imaginar que os óbitos em nosso familiares se registrassem com tanta rapidez. Um avô, uma avó, um tio -e pronto, lá se foram três gavetas. Sobrava uma, e nós contávamos com o fator tempo para adquirir mais um jazigo -quando, de repente, um casal de velhos tios faleceu. Essas coisas acontecem, mas o problema está criado. Aí ocorreu-nos uma solução.
Proponho a V.S. colocar o titio e a titia numa mesma gaveta. Talvez o senhor ache o pedido estranho, mas, francamente, não vemos inconveniente nisso. Em primeiro lugar, eles foram casados durante 40 anos. Se compartilharam um leito durante tanto tempo, por que não uma gaveta fúnebre? Espaço não será problema, porque ambos são, ou eram, magrinhos -e, como o senhor sabe, daqui por diante só diminuirão de tamanho. Finalmente, um detalhe interessante: gaveta foi uma coisa de que meu tio sempre gostou. Não apenas tinha vários gaveteiros, como também usava a expressão no sentido metafórico. Funcionário público, grande dedo-duro, ele costumava espionar os colegas. Sabia tudo da vida deles e dizia com orgulho: Tenho o fulano na gaveta, o beltrano logo estará na minha gaveta.
Pois agora o titio estará na gaveta, para ele um lugar de muita importância. V.S. ponderará que é o feitiço virando contra o feiticeiro. Creio que não. Creio que essa particular gaveta tem um sentido especial para o meu tio. Ele poderá dizer, com orgulho! Deus me tem em sua gaveta. Dessa hospitalidade ele poderá desfrutar por toda a eternidade. Afinal, ele não paga taxas. Quem paga as taxas são os pobres subscritores desta que apelam à compreensão de V.S. Pode haver taxas para gavetas, mas não, em nossas gavetas, dinheiro que pague tais taxas.

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