São Paulo, quinta-feira, 31 de outubro de 1996
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Anjos decaídos

OTAVIO FRIAS FILHO

Adeptos da literatura esotérica podem ser ludibriados por um título recém-aparecido nas livrarias, "Presságios do Milênio -Anjos, Sonhos e Imortalidade", do ensaísta nova-iorquino Harold Bloom. Ao contrário do que promete, o livro é uma análise literária do misticismo cristão, judaico e muçulmano.
Análise literária diz pouco, porque Bloom dissolveu as fronteiras da crítica na filosofia e na religião, criando uma mitologia própria baseada num tripé extravagante: a poesia anglo-americana, as interpretações medievais sobre os textos sagrados do judaísmo e a psicanálise como uma leitura da obra de Shakespeare.
Ele era um professor de literatura inglesa quando, numa noite de verão em 1967, foi visitado em sonho pela visão apavorante de um anjo de fogo. Ainda sob o impacto dessa imagem, escreveu um livro curto, tão febril que os amigos o desaconselharam a divulgar e que só foi publicado vários anos depois, em 73.
Esse livro pedante, vazado em terminologia bizantina e aparentemente confinado ao estudo de alguns poetas, contém uma teoria completa e original sobre a criação artística. A literatura é vista como uma economia, determinada pela escassez; seu dinamismo é o resultado de relações de força inconscientes.
Para levar sua obra a termo, cada artista precisa superar a influência exercida por algum antecessor, o que é óbvio, mas tem de fazê-lo de uma maneira específica, deslocando o lugar ocupado pela obra anterior, "deslendo-a", de modo que ela se torne um comentário da obra nova e que a influência seja, assim, invertida.
Ao criar o complexo de Édipo, por exemplo, o romancista Sigmund Freud conseguiu deslocar a tragédia grega, de modo que a narrativa de Sófocles se torna freudiana, um contra-senso cronológico, mas para Bloom a literatura é justamente a anulação do tempo, preenchimento dos vazios deixados pelas obras anteriores.
Ao longo de três livros seguintes, Bloom tentou demonstrar, de maneira cada vez mais obscura e inconvincente, o acerto de sua teoria. Voltou-se depois para o que chamou de religião americana, centrada numa seita autóctone, os mórmons, a última das crenças a reivindicar inspiração divina. E agora, os anjos.
A erudição de Bloom é tão vasta que ele se converte num superdiletante, suas tiradas muitas vezes não passam de humorismo. O importante é que ele culmina um processo pelo qual a crítica se emancipa da obra e se torna, ela mesma, uma forma de arte. Os artistas exauriram o mundo sensível e já não têm mais assunto.
O ensaísmo crítico continua tendo o seu assunto -as obras do passado confrontadas à inexpressividade do presente-, seu parasitismo é agora auto-suficiente porque também ele ocupa os espaços vazios para se impor, ao lado da psicanálise (outra forma de crítica), como a manifestação literária por excelência do nosso tempo.

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