São Paulo, sexta-feira, 1 de novembro de 1996
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Thriller mistura crueldade e boa mesa

JOSIMAR MELO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A perversidade e a boa mesa dão estranhamente as mãos no romance de estréia do escritor inglês John Lanchester, "Gula - Um Romance" ("The Debt to Pleasure"), lançado agora pela Companhia das Letras.
"Este livro não é uma compilação convencional de receitas", alerta já na primeira linha o personagem-narrador, o esnobe e erudito Tarquin Winot.
São no entanto as receitas, apresentadas de forma literária, entremeando memória e reflexões, que constituem o fio condutor.
Aos 34 anos, Lanchester terminou seu livro depois de quatro anos de trabalho. Nascido em Hamburgo (Alemanha) e educado na Inglaterra, ele foi jornalista esportivo, crítico literário e de restaurantes (para o "Observer" de Londres).
Acaba de se retirar da função de editor do "London Review of Books" para se dedicar à literatura, o que foi possibilitado pelo sucesso de sua obra, lançada há seis meses na Inglaterra: primeira edição de 100 mil exemplares, comercialização para 13 países.
Se não é um livro de receitas, "Gula" é um apanhado de reflexões estéticas e filosóficas envolvendo um intrigante enredo de thriller.
O que no início parecem ser as memórias de um requintado bon vivant, envolvido em debates sobre os cozidos de carnes e de frutos do mar, o caráter dos rios vinícolas da França, o paladar britânico, o dry martini, as artes plásticas, a música revelam-se pouco a pouco o percurso de um perverso e frio criminoso, que traz do berço o refinamento da maldade.
O que tem a comida a ver com tudo isso? Qual a relação entre a perversidade e o prazer da mesa, ambos aparentados no livro como duas faces do mesmo pecado?
"Acho que deve haver uma conexão entre a crueldade e a gastronomia", disse Lanchester por telefone à Folha, de Londres, na última terça-feira.
"Mas essa conexão tem a ver menos com o prazer e mais com a obsessão que move as pessoas que são ligadas tanto à comida quanto à crueldade. Ambas têm um lado gratificante e a interseção entre elas é justamente a obsessão."
No livro, as digressões sobre arte e estética são expostas em capítulos organizados segundo cardápios de estações salpicados de receitas (blinis, carneiro assado...), entrelaçando-se com a gastronomia ao mesmo tempo em que revelam lentamente que o prato principal do livro não é nenhum desses, mas o desenho de uma personalidade esnobe, megalômana e perversa.
Uma espécie de serial killer sereno, que dispensa as câmeras de TV e a glória instantânea, preferindo o secreto prazer interior da realização de seus terríveis planos.
Obra de texto elegante, o livro de Lanchester lapida um tipo de personagem irresistível para os leitores tanto do gênero policial quanto do gastronômico.
O descontraído mau-caráter do criminoso impune e bon vivant, ambientada no aprazível interior da França, lembra a do Ripley de Patricia Highsmith ("O Amigo Americano").
"Já me falaram dessa coincidência", diz Lanchester. "Gosto muito dos livros de Highsmith, mas não houve intenção de me inspirar no seu personagem". De toda forma, como Ripley, e até com mais méritos, Tarquin Winot entra desde já na galeria dos grandes anti-heróis.

Livro: Gula - Um Romance
Autor: John Lanchester
Lançamento: Companhia das Letras
Preço: R$ 18 (221 págs.)

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