São Paulo, sexta-feira, 1 de novembro de 1996
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Boulez diz que MTV são dezenas de Vivaldis

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há uma série de contos de Henry James (1843-1916) sobre escritores no auge da fama e afastados por essa mesma fama da prática da literatura. Naquele ponto onde deveriam estar dando suas maiores obras, vêem-se jogados no burburinho de uma vida cheia, cujo preço é uma arte vazia.
O compositor, maestro, escritor e professor Pierre Boulez poderia servir de tema para outra espécie de fábula: o homem integrado, que levou plenamente a termo suas virtudes, levou a si mesmo até onde tinha de levar -e continua.
Aos 71 anos, com uma agenda que daria medo a um rapaz de 17, Boulez continua em pleno exercício de sua arte.
Tão tranquilo nos modos quanto é irrequieto no pensamento, sempre cordial e sem nenhuma pompa, Boulez participou de um encontro, na semana passada, com um pequeno grupo de compositores e alunos, promovido pela Faculdade Santa Marcelina.
Sob a coordenação do compositor Flo Menezes e com a presença de Gilberto Mendes e Aylton Escobar, o encontro foi um dos pontos altos da passagem de Boulez pela cidade, onde regeu dois concertos do Ensemble InterContemporain.
Durante uma hora e meia, ele respondeu perguntas sobre a sua própria música, o uso de computadores, o teatro musical e a música popular. O que se segue é uma transcrição livre dos pontos mais relevantes da conversa.
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NOVO LIVRO - No ano passado, dei minhas últimas aulas no Collège de France, sobre o tema da obra como fragmento -cada obra como fragmento de uma obra maior, "in progress". Essas aulas estão agora nas mãos do musicólogo Jean-Jacques Nattiez e serão editadas em livro dentro de dois anos.
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USO DO COMPUTADOR - O computador serve de duas formas ao compositor instrumental: na preparação de materiais e na elaboração da estrutura. Exemplo: calcular a transição, com variações, de um acorde a outro, na orquestra. Outro exemplo, que empreguei em "Répons": a reverberação e repetição acelerada de gestos instrumentais.
Em "Répons", uma determinada figura rítmica, repetida e transformada pelo computador, em tempo real, pode servir de fundo contínuo para a música. É como olhar as nuvens: você observa sua forma, que é muito bonita. Presta atenção em outra coisa. Quando volta a olhar, a nuvem já mudou. O objeto é inteiramente diverso, embora seja da mesma natureza.
É isso o que acontece com essas texturas de fundo em "Répons", que são trazidas à tona, ocasionalmente, por algum gesto deliberado dos instrumentos -como um relâmpago, que faz ver as nuvens no céu da noite por um instante, antes que desapareçam mais uma vez.
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ÓPERA - Gostaria de pôr em prática uma outra espécie de teatro musical. O espaço físico da ópera convencional precisa ser reimaginado. Novas tecnologias da voz precisam ser integradas à música, assim como os recursos do teatro moderno. E do teatro oriental: máscaras, ou marionetes, à maneira do "Bunraku" japonês.
Tinha planos para uma ópera com livreto de Jean Genet. Genet morreu. Outro colaborador, Heiner Müller, morreu também em dezembro, um mês antes de começarmos o trabalho. Preciso achar outro, se é que alguém vai ter coragem... O importante é que a colaboração deve ser real desde o início, entre o libretista, o diretor de teatro e compositor.
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MÚSICA ELETROACÚSTICA - Concertos de música em fita, sem participação de instrumentistas, me fazem pensar numa cerimônia fúnebre: a audiência calada e imóvel, observando a cremação do corpo. Você pode escutar uma sinfonia de Mahler em disco, em casa, e ter uma experiência muito rica.
Mas seria absurdo botar um disco no teatro, para 2.000 pessoas.
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MÚSICA POPULAR - Até a época de Mozart e Beethoven, a música popular e a erudita compartilhavam o mesmo vocabulário. Depois disto, não será mais o caso. Há coisas de que gosto em música popular: a espontaneidade e a ausência da História, com "h" maiúsculo. Mas não tolero a repetição rígida de modelos (que vão sendo substituídos a cada um ou dois anos).
Você começa a ver MTV e pode até ser interessante. Mas, depois de 20 minutos, é impossível. São dezenas de Vivaldis -escrevendo sempre o mesmo concerto.
E, depois, convenhamos, para um século que começa com "A Sagração da Primavera", de Stravinski, é muito pouco continuar, até hoje, insistindo no 1-2-3-4, 1-2-3-4, 1-2-3-4. É muito pouco -mesmo com as síncopes!

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