São Paulo, sábado, 2 de novembro de 1996
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Direito dos mortos e dos vivos

WALTER CENEVIVA

"Mors omnia solvvit", diziam os romanos. Para eles, a morte resolvia tudo. Walter Raleigh, que se celebrizou introduzindo o fumo na Europa, disse, passando o polegar sobre o fio do machado do carrasco que lhe cortaria o pescoço: "Eis o remédio para todos os meus males!".
No mundo moderno, contudo, os mortos têm direitos. Exercíveis, como óbvio, por seus herdeiros.
Mas são direitos próprios dos que faleceram, a contar da disponibilidade de seu corpo, cuja destinação obedece ao que eles houverem determinado, em vida.
Um dos aspectos mais interessantes encontrado na lei brasileira está na preservação do bom nome e da imagem do falecido, livrando sua memória da injúria, da difamação e da calúnia.
O herdeiro ou sucessor do morto pode defender-lhe a memória, se considerar que alguém a ofendeu, fazendo-o em nome próprio, mas como direito do que faleceu, preservado para além do fim de sua vida.
Nem mesmo depois da morte extinguiram-se seus direitos à honra, à boa fama.
Um segundo ponto de vista parte do exemplo histórico de Tiradentes. Sua condenação à morte, por enforcamento, se estendia à destruição de seu corpo e aos seus herdeiros, atribuindo-lhes os efeitos daquilo que a coroa portuguesa considerava a infâmia do condenado.
Hoje, não temos a pena de morte e qualquer punição se restringe ao próprio condenado. Não passa de sua pessoa.
A questão mais interessante, em tempos recentes, provocada pelos fenômenos da vida e da morte, é a dos embriões fecundados artificialmente e não utilizados para a reprodução humana.
As posições radicais (destruir o embrião é assassinato e destruir o embrião é resolver um problema de higiene, de limpeza) se opõem com vigor.
Pode-se pensar no problema olhando-o de dois pontos de vista diferentes, começando pela existência de direitos da pessoa, antes mesmo de seu nascimento.
Para os juristas, trata-se de conhecimento corriqueiro. Para o leigo pode parecer estranho que alguém tenha direito antes de nascer. Todavia, é assim.
A lei assegura direitos ao nascituro, ou seja, ao feto que se encontra, ainda, no ventre da mãe, sob a condição de que nasça com vida.
Exemplo característico é o da doação. Pode ser feita, ao nascituro, sem dificuldade maior, dependendo apenas da aceitação dos pais.
Outro modo de ver mescla o tema da morte com o da natureza do embrião, em face das religiões. A conciliação entre os confrontantes é impossível. Esbarra na existência -ou não- de alma no embrião, que é o produto da união do óvulo feminino com o sêmen masculino, dando origem a um começo de vida, criado "in vitro" para ser inserido no corpo da futura mãe.
Considerando que muitos embriões são produzidos e não utilizados nas técnicas de reprodução assistida, a simples disposição deles ofende seu direito à vida?
Em termos estritamente jurídicos, não. O embrião não é nascituro, pois esse termo só se aplica ao feto vivo, existente no ventre materno.
Assim, o embrião está desprotegido de qualquer direito, salvo aquele atribuível às pessoas que forneceram a matéria orgânica que lhe deu origem. A extinção do embrião é inconfundível, para o direito, com a morte do ser vivo, não envolvendo as tristezas do Dia de Finados.

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