São Paulo, sábado, 2 de novembro de 1996
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A morte e o renascimento da economia

MILTON GAMEZ
DA REPORTAGEM LOCAL

O cientista político norte-americano Francis Fukuyama decretou o fim da história. Foi atropelado pela Guerra do Golfo.
John Horgan, repórter da "Scientific American", matou a Ciência. Foi desafiado pela suposta descoberta de traços de vida em Marte num meteorito.
Agora, Paul Ormerod, professor da Universidade de Manchester (Reino Unido), quer ser o coveiro da economia. Provavelmente, passará para a história como o arauto que deu certo.
Depois de anos à frente do departamento de projeções econômicas da revista "The Economist" -espécie de Bíblia mensal do livre mercado-, Ormerod cansou-se da pregação cega e cínica dos economistas ditos ortodoxos.
Defender o livre mercado, as privatizações, o rígido controle monetário das economias, o fim do déficit público, o Estado mínimo, o fluxo desregulamentado de capitais e outros preceitos neoclássicos é a saída fácil dos economistas para ganhar dinheiro.
Difícil, diz Ormerod, é apontar saídas eficientes para as consequências de políticas econômicas mecanicistas, que esquecem o fato de que a sociedade não é uma máquina. Difícil é apontar o grau de intervencionismo do Estado na economia necessário para solucionar, de forma perene, o desemprego, o maior dilema da Humanidade neste fim de século.
Com suas receitas infalíveis -exceto quando estão no governo- de controle da inflação, os economistas não têm respostas práticas para o problema.
Agarraram-se a versões simplificadas de teorias clássicas da economia, esquecendo-se de que autores como Adam Smith, Malthus, Ricardo e Marx tinham o homem e o comportamento social como pano de fundo de suas idéias.
No receituário neoliberal, os economistas reforçam o papel do interesse particular do indivíduo e das empresas como mola-mestra do capitalismo bem sucedido.
Esquecem, contudo, a referência moral da sociedade, descrita por Smith em sua "Teoria dos Sentimentos Morais", que precedeu "A Riqueza das Nações", inspiradora intelectual da nova direita da política ocidental.
O individualismo, dizia Smith, era permeado pelo sentimento da amizade e o desejo de aprovação social. Fato que lady Thatcher, defensora dos valores vitorianos, "esqueceu" ao declarar que a "sociedade é algo que não existe".
Ormerod, em seu livro "A morte da economia", recém-lançado no Brasil, desmonta os dogmas do liberalismo e propõe o resgate do vínculo com a realidade que havia na teoria econômica clássica.
Embora tenha mais competência para descrever o problema do que para apontar soluções, o escritor britânico tocou na ferida dos colegas economistas.
Numa época em que a modernização empresarial e a globalização despejam milhões de trabalhadores da indústria nas ruas, surgem soluções como a flexibilização das leis trabalhistas, insuficientes para evitar, a curto prazo, a deterioração do tecido social.
As críticas de Ormerod chegam ao Brasil três anos depois de terem sido escritas. Não servem de guia, mas de ponto de partida para uma nova revolução na maneira de entender e lidar com os problemas econômicos da atualidade.
O heterodoxo ex-ministro do Planejamento, João Sayad, leu e gostou. Em artigo na Folha, Sayad citou o livro e ironizou aqueles que defendem a adoção de modelos econômicos como o dos "tigres asiáticos", esquecendo suas políticas industriais intervencionistas.
O feijão-com-arroz Mailson da Nóbrega (ex-Fazenda) também leu Ormerod. Ele diz que "o livro começa bem, mas termina mal ao falar só de desemprego".
Nóbrega torceu o nariz, literalmente, ao falar de desemprego. Afinal de contas, são apenas números crescentes nas estatísticas da Fiesp. Ele fecha com um dos pais do Plano Real, Edmar Bacha, para quem o desemprego ainda está baixo no país.
Ambos trabalham hoje para o mercado financeiro. Bacha faz análises macroeconômicas para o BBA Creditanstalt. Nóbrega é vice-presidente do BMC.
Bem-humorado, o ex-ministro conta a parte do livro que mais gostou: Lord Keynes, lembra Ormerod à página 18, dizia que "os indivíduos atraídos para o mercado financeiro são de natureza dominadora e até psicopata. É muito melhor absorvê-los em Wall Street do que no crime organizado".
Felizmente, alguns economistas procuram usar seu conhecimento de ciências exatas para reumanizar a economia. José Alexandre Scheinkman, chefe do departamento de economia da Universidade de Chicago, tenta achar na crueza dos números as tendências das pessoas à criminalidade.
A economia só tem sentido se melhorar a vida das pessoas, diz Scheinkman (que também se preocupa com o déficit público, os juros e o câmbio).
Quem sabe Ormerod é a versão econômica de Giotto, um dos primeiros a retratar o volume tridimensional, o espaço, na humanização da arte medieval, há mais de cinco séculos.
Se tiver, entre seus leitores, mestres como Michelangelo e Leonardo, Ormerod terá marcado o renascimento da ciência mais influente e decepcionante dos últimos vinte anos.

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