São Paulo, sábado, 2 de novembro de 1996
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Brasil: país monstro?

RUBENS RICUPERO

George Kennan, hoje nonagenário professor emérito de Princeton, foi o primeiro a prever com lucidez, em 1947, a futura desagregação da URSS. Em seu famoso artigo "As fontes da conduta soviética", publicado no "Foreign Affairs" sob o pseudônimo de X (o autor era ainda diplomata de carreira), Kennan recomendava a adoção de uma política firme e de preferência não-militar, de contenção do poder soviético onde quer que este exercesse pressão. Caso houvesse persistência na contenção, as contradições internas do sistema se encarregariam de apodrecê-lo por dentro. O único engano foi quanto ao tempo requerido para isso. X pensava em 15 a 20 anos e demorou o dobro.
Com a mesma percepção, Kennan aborda no livro dedicado à sua "filosofia pessoal e política", "Around the Cragged Hill", as peculiares dificuldades criadas aos países por um tamanho desmesurado. Quando um país tem não só um território continental de milhões de quilômetros quadrados, mas também população acima de 150 milhões, as complicações derivadas de cada dimensão não apenas se somam, mas se multiplicam, se potencializam.
Em sua opinião, cabem apenas cinco nesse clube seleto: os Estados Unidos, a Rússia, a China, a Índia e o Brasil. Não basta como cacife para entrar território continental, como o do Canadá e da Austrália, se a população é reduzida. Em sentido contrário, população gigante em terra exígua ou limitada, como o Japão, Bangladesh ou Indonésia, tampouco dá direito a ingresso.
A disposição de espírito de Kennan em relação ao tamanho nada tem em comum com o ufanismo ingênuo do "gigante pela própria natureza" do nosso Hino Nacional. Tanto assim que ele os chama de "países monstro", obviamente não com a intenção de elogiá-los. Seriam, na verdade, problemas em si e para si próprios, pela mesma razão de Hegel ao considerar que, além de certos limites, a quantidade provocava mudança na qualidade mesma do objeto.
A perspectiva do livro é, sobretudo, política e reflete de certa maneira a preocupação de Rousseau, segundo a qual a democracia só funciona bem nas unidades pequenas onde todos os cidadãos se conhecem pessoalmente (como, aliás, sucede nas comunas suíças de onde Jean-Jacques era originário).
Num trabalho que escrevi em 1991 sobre o futuro do sistema mundial de comércio eu já havia também suscitado a questão, mas a partir de ângulo diferente. O que me interessava era indagar se as nações continentais, como as chamava, teriam alguma possibilidade de integrar-se à globalização e, em caso afirmativo, como se diferenciariam as modalidades dessa integração das adotadas por países menores como a Holanda ou a Dinamarca.
O problema não se coloca, de fato, da mesma forma para cidades-Estados como Cingapura e Hong Kong, que não dispõem de outra alternativa, para unidades nacionais limitadas como as nações européias, cujas opções, embora maiores, se vêem reduzidas pela globalização e para os gigantes. Estes já constituem mundos próprios, universos que contêm possibilidades muito amplas de crescimento horizontal, para dentro. Devendo ocupar-se primeiro da integração interna de suas regiões menos avançadas, não surpreende, assim, que os monstros apresentem em geral índices menores de integração ao resto do mundo.
Tome-se, por exemplo, o caso da Índia. Como imaginar que uma população de 950 milhões, em grande parte isolados em aldeias, com agricultura artesanal, possa aceitar uma liberalização do comércio agrícola que venha a ameaçar sua sobrevivência? É interessante que a China, embora crescendo por meio da presença crescente no comércio mundial, conserve uma estrutura dualista, da qual apenas o setor das zonas de processamento de exportações participa mais ativamente, enquanto o miolo da China profunda só é tocado em parte por essa tendência.
Até 6 ou 7 anos atrás, o Brasil não se desviava desse padrão e o coeficiente de suas importações em relação ao PIB era de pouco mais de 4%, incluído o petróleo. Aos escandalizados por essa aparente anomalia é bom lembrar que até os anos 50 o índice de importações dos Estados Unidos era muito parecido. Quanto às exportações dos EUA, elas representavam, em 1950, cerca de 3,6% do PIB, subindo para 5% em 1973 e 7,1%, em 1992. Como se vê, para os americanos o mercado interno ainda constitui a parte do leão. Agora que, com a liberalização, as importações brasileiras se aproximam dos 15% do PIB, as pessoas começam a se alarmar com o déficit comercial. Não seria isso, porém, exemplo típico das dores de transição de um país monstro tentando, com mais dificuldade que os nanicos, integrar-se à globalização?

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