São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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O FGTS e o Brasil arcaico

PAULO RABELLO DE CASTRO

Uma das últimas manifestações do arcaísmo econômico que ainda domina o país, o regulamento do FGTS, nasceu, entretanto, há 30 anos, como uma resposta a um outro arcaísmo -o da estabilidade no emprego após dez anos de relação de trabalho.
Na época, o FGTS representou uma bela saída: antecipar, mês a mês, um pecúlio indenizatório ao trabalhador, em substituição ao engessamento provocado pela estabilidade e, ainda de quebra, utilizar os recursos que iriam se acumulando em contas individuais para financiar a habitação popular e a infra-estrutura das cidades que então emergiam.
Tudo naquela velha base, com alto grau de regulamentação e centralização nas mãos do governo, na presunção de que só assim o programa poderia ser sério e dar certo. Ilusão.
Trinta anos depois, o gato comeu o valor do fundo. Embora seja impressionante registrar que o FGTS tenha recursos depositados da ordem de R$ 50 bilhões, dói saber que esse montante poderia alcançar hoje a casa dos R$ 150 bilhões, bastando apenas que a correção monetária do fundo não tivesse sido surrupiada tantas vezes pelo governo, a taxa de juros (3% ao ano) não fosse tão irrisória, e os recursos, tão mal aplicados.
Pensando com pouco mais de imaginação, se o FGTS tivesse sido gerido como patrimônio livre dos trabalhadores, indo buscar a conjugação de rentabilidade com segurança nos melhores papéis de renda fixa e variável, teríamos hoje orgulho de falar num FGTS com muitas centenas de bilhões de dólares acumulados, numa média, talvez, de US$ 10 mil a US$ 20 mil por conta vinculada.
A administração centralizada dos recursos e a falta de transparência na gestão do FGTS propiciaram a aplicação politiqueira dos recursos, de modo que os US$ 48 bilhões atualmente emprestados são recursos de duvidoso retorno. Para devolver aos trabalhadores esses recursos, só com os leilões da privatização.
A conclusão é simples e óbvia: cada um deve cuidar do que é seu. O governo não tinha por que postar-se de intermediário entre os depósitos feitos pelos empregadores e a gestão dos recursos por seus próprios titulares. A menos que estivesse mal intencionado! Não estava. Os primeiros anos do BNH, então gestão do fundo, foram primorosos. Construiu-se muito com os financiamentos do FGTS. Paulatinamente, o sistema do FGTS substituiu a vetusta legislação da estabilidade.
Mas uma noção crucial se perdeu no meio do caminho: que o FGTS não era nem deveria ser fundo para os propósitos do governo, nem dos empregadores, nem dos construtores, nem dos bancos, nem da burocracia. O FGTS sempre foi um pecúlio dos trabalhadores, cuja premissa básica é ter fundos e render o máximo possível, dentro dos limites do investimento prudente. Perdeu-se essa noção.
Por paradoxal que possa soar, o trabalhador, que hoje reivindica a gestão privada do FGTS, tem de arrumar bons argumentos para ter-lhe devolvido o que, de fato, sempre foi seu. O governo considera isso "radical", pois desvenda o desequilíbrio financeiro do fundo, manipulado como foi nos anos negros da inflação aguda.
Os "intelectuais" do Brasil arcaico se impacientam porque "...onde já se viu trabalhador pleitear gestão de capital?"
Por trás das reações, uma realidade emerge: o Brasil velho estrebucha quando o povo tenta levantar-se para o exercício livre de sua cidadania. O Brasil velho tem medo da "falta de braços", do mesmo jeito com que, há mais de cem anos, os escravagistas denunciavam a insensatez dos abolicionistas ao pregarem a liberdade civil do negro.
Um século depois, o país arcaico ainda mexe seus pauzinhos para segurar a rapadura. Não adianta lembrar-lhes que outros países -outras sociedades como a nossa- já chegaram lá, encontrando instrumentos flexíveis de valorizar as opções de investimento de cada trabalhador por meio de mecanismos de fundos de previdência. Em poucos anos, o pequeno grande Chile (15 milhões de habitantes) formou um patrimônio quase do tamanho do nosso FGTS. Lá, a cidadania econômica é respeitada, o jogo malicioso do paternalismo foi abolido.
Nos EUA, a Associação dos Professores da Califórnia, dos funcionários da cidade de Nova York, dos metalúrgicos de Detroit e centenas de outras associações de trabalhadores gerem seus fundos de previdência, que passam da cifra de US$ 1 trilhão.
Cidadania é percepção de futuro garantido. O cidadão brasileiro ainda carrega nas costas a carga pesada do governo, financia sua catastrófica incompetência gerencial e ainda, na hora de pedir de volta o que é seu, tem de exercitar a santa paciência de ver seu FGTS disputado por todos os sabidos da pátria amada.
Apesar desses entreveros, a hora é de transformação. Uma coisa nova aconteceu: os políticos se abraçaram na estabilidade do real. Isso os obrigará, a partir de agora, a prosseguir adotando posturas inovadoras e eliminando escravaturas que jamais cogitaram de abolir.

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