São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Não ser Burundi

OSIRIS LOPES FILHO

Há na tecnocracia federal um notável traço hegeliano. O pressuposto de suas ações é o de que o Estado é superior à sociedade que o compõe.
Impera, digamos, por elegância, o Espírito Absoluto, pretendendo imprimir racionalidade às ações de governo.
O projeto de alterações tributárias, encaminhado ao Congresso Nacional, contendo mais de 80 artigos, constitui a encarnação desse pensamento de superioridade dos detentores do poder, em relação à sociedade. E, mais ainda, desprezo à função dos congressistas, como representantes mais legítimos da vontade popular.
O volume de alterações, o objetivo proposto -modernização, simplificação, harmonização e universalização-, a complexidade da matéria, o assalto ao bolso dos contribuintes, e não o seu resguardo, são questões que indicam a necessidade de profunda e complexa discussão, incompatíveis com o prazo para a sua aprovação até o final do ano.
Há uma regra estabelecida no Código Tributário Nacional, em seu art. 138, relativa à denúncia espontânea, que o projeto teima em infringir, a despeito da jurisprudência dos tribunais, no sentido da sua observância.
Tal dispositivo diz que a responsabilidade por infrações tributárias fica excluída se o infrator declarar espontaneamente a sua existência e for acompanhada de pagamento do débito. Não se pode aplicar penalidades se o contribuinte confessa a infração e paga o tributo devido, acompanhado dos juros de mora.
O art. 61 e seus parágrafos do projeto, aparentando uma redução da multa de mora (decorrente do atraso), fixa o seu limite máximo em 20%, introduzindo-a, todavia, com base diária, à razão de 0,33% por dia de atraso.
A questão central é que se continua a desobedecer ao citado art. 138 e à jurisprudência dos tribunais.
Se o contribuinte paga espontaneamente o tributo devido, fora do prazo, fica excluída a responsabilidade por infrações. Não há que se impor a multa moratória. Ela só pode ser aplicada quando a exigência do tributo em atraso é feita pelo fisco.
Editar nova legislação, mantidos vícios e desvios típicos do fisco autoritário, não contribui nem para a modernização das leis tributárias, nem para sua simplificação.
País civilizado é onde se cumprem as leis. O exemplo deve ser dado pelo governo. Inventar a roda a cada dia, mudar a lei ao sabor das idiossincrasias dos detentores do poder, tende a igualar nosso país ao Burundi.

Osiris de Azevedo Lopes Filho, 57, advogado, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

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