São Paulo, terça-feira, 5 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Indústria de cacarecos no combate a Francesca

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sobre meu artigo da semana passada ("Indústria brasileira que só fabrica porcarias"), dizendo péssima a qualidade do produto brasileiro quando comparado com o americano, fui acusada, em cartas de leitores, de falta de patriotismo e ingenuidade, por desconhecer macroeconomia e coisas do gênero.
Um dos leitores acusou o artigo de ser uma "vingancinha de uma pessoa que teve que pagar algo ao governo quando ia comprar sua BMW". É muito engraçado ser acusada de um absurdo desses: de comprar uma BMW! De fazer uma coisa que eu jamais faria.
Mas leitor é assim, lê o que quer, acredita no que quer. Muitos deles me chamam de "Marilena", com "a": ou seja, lêem o que querem, não o que eu escrevi. É um direito que lhes cabe, no entanto. Para quem escreve, resta acostumar-se a virar fantasma, uma imagem reproduzida ao infinito na cabeça de gente em cuja cara nunca se olhou.
Uma leitora me perguntou se as pessoas não têm medo de mim, por causa do meu tom de escrever. Algumas têm, mesmo gente que eu por vezes considerei próxima de mim. Convencem-se, por um mecanismo que até hoje me escapa, de que passo meu tempo fabricando "vingancinhas" contra elas, projetando bombas para explodir na privacidade de suas vidas cheias de importância.
Era preciso que eu desse à vida delas, ou de qualquer outro ser humano, a importância que elas próprias dão. Não dou. Talvez seja esse o problema. Talvez se ressintam disso.
Acusações sem fundamento me abatem: recuo de espanto, depois fico entre a gargalhada e a decepção. Caio no profundo relativismo do personagem do "Estrangeiro", de Camus.
No fundo, tanto faz, como dizia o escritor: nada tem real importância; tudo é verdade e nada é verdade; sou acusado de dar provas de insensibilidade; mas mesmo no banco dos réus é sempre interessante ouvir falar de si mesmo.
Quando publiquei meu primeiro livro, minha melhor amiga na época leu para mim um poema chamado "Francesca". Era em inglês e não me lembro do autor. Só da atmosfera e de um único verso: Francesca era uma espécie de pária, acusada injustamente e sempre no centro de controvérsias.
"Perdida" (o verso dizia), "num turbilhão de falas sobre você". Como o poema era escrito em segunda pessoa, a leitura soava como uma dedicatória e uma manifestação de apoio de que nunca esquecerei.
Entretanto -e embora eu não responda cartas-, a maioria dos leitores que escreve é solidária. Sobre a indústria brasileira de cacarecos, minha idéia era reproduzir aqui trechos das cartas de consumidores que não precisam entender de macroeconomia para achar o empresariado brasileiro "sacana".
Mas como perdi o espaço, deixo para a próxima. Não sem antes agradecer o leitor José Lobo pela ótima frase de Samuel Johnson: "Por trás de todo patriota, se esconde um incontrolável sacana", com a ressalva (do leitor) de que isso não se pode generalizar no caso brasileiro.

E-mailmfelinto@uol.com.br

Texto Anterior: Piloto não sabia por que turbina parou
Próximo Texto: Noivo pratica suicídio na frente da atriz
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.