São Paulo, terça-feira, 5 de novembro de 1996
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Capitalismo desregrado

ANDRÉ LARA RESENDE

Fui à Rússia. Muitas horas de vôo, três dias de visitas, seis horas de defasagem horária. Vida moderna, vida corrida. Fui em boa companhia, estive com muita gente e voltei impressionado. O velho sistema político ruiu e, ao contrário do que ocorre na China, a abertura política precedeu a abertura econômica.
A passagem da economia de planejamento central para a economia capitalista de mercado é uma tarefa hercúlea.
A opção russa foi a da privatização acelerada, selvagem, como aquela pela qual alguns por aqui clamam. Embora o processo tenha tido a pretensão de ser democrático, com a distribuição de bônus de privatização para toda a população, a prática foi extraordinariamente concentradora de riqueza. Com os leilões mal divulgados ou propositalmente fechados, as empresas foram praticamente doadas para seus administradores e associados poderosos.
Surgiu uma nova classe de jovens capitalistas audaciosos que a partir das instituições financeiras recém-criadas passaram a controlar a economia. A grande maioria dos bancos não tem operações de crédito, não recebe depósitos do público, não administra fundos de terceiros e não presta qualquer tipo de serviço.
São "holdings" poderosas -controlam também as empresas de comunicação- que operam nos mercados de títulos públicos, de dívidas interna e externa e no mercado acionário criado com as privatizações.
Após um surto hiperinflacionário que destruiu toda a poupança pessoal, a rigorosa política monetária do recém-criado Banco Central estabilizou o rublo e a inflação foi controlada.
A economia passa agora por uma crise de iliquidez: as empresas têm dificuldades financeiras e os bancos que as controlam dependem das altíssimas taxas de juros pagas nos títulos públicos para sobreviverem.
As grandes empresas se recusam a recolher o Imposto de Renda. Como não recebem do Estado, alegam não ter como fazê-lo. As pequenas simplesmente não pagam e o fisco não está aparelhado para cobrar. Moscou está em obras e o déficit público cresce.
O sistema legal é incoerente e conflitante, não existe recurso a uma lei maior e o Judiciário não funciona. As empresas de segurança privada e as chamadas máfias proliferam.
Rica em recursos naturais, a Rússia tem um superávit comercial anual de quase US$ 40 bilhões. A conta capital é oficialmente superavitária e há restrições à entrada de capitais estrangeiros.
As reservas internacionais, entretanto, não passam de US$ 12 bilhões. A explicação? Os capitais russos se dirigem clandestinamente a portos mais seguros.
Inebriados com a liberdade recém-conquistada, os russos parecem dispostos a tudo aceitar: a corrupção, a criminalidade e a desagregação dos valores. País de história extraordinária, nação orgulhosa, convencida de sua superioridade como superpotência, a Rússia se defronta hoje com a profunda humilhação de tentar canhestramente imitar o sistema de seus adversários de décadas.
Não parece haver volta ao comunismo. O potencial de crescimento e as oportunidades são extraordinários.
Mas a desordem econômica, a corrupção, a criminalidade e a desagregação de valores, num país de longa tradição autoritária e profundo sentimento nacionalista, são um perigoso caldo de cultura. O capitalismo desregrado é feio.

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