São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Um país sem política externa

EMIR SADER

no Brasil, apesar de esforços isolados, dá-se pouca importância -vide o caso da "grande imprensa"- à cultura política internacional. Sinal de provincianismo? Ou sinal de que o "mercado" não quer saber muito o que se passa na Coréia do Sul, no Afeganistão ou na Guatemala?
Há muito tempo não temos política externa. Possuímos, no máximo, ministros que funcionam como secretários de comércio exterior, defendendo lá fora os interesses imediatos dos ministérios econômicos. Quando os governos acreditam que sua função é amoldar mecanicamente os destinos nacionais aos vaivéns do mercado internacional, que política externa poderia existir, senão a adequação passiva a esses fluxos? Enquanto nação, deixamos de colocar os grandes problemas do mundo hoje, de formular políticas alternativas, de buscar aliados para levá-las adiante. Importunar os poderosos parece estar fora do alcance dos nossos provincianos governantes, que desprezam toda a massa crítica e o pessoal altamente capacitado que o próprio Itamarati produziu ao longo do tempo.
Para dar conta do tema não basta apelar para "boutades" de efeito midiático nos caracterizando como "caipiras". No nosso caso, um exame das visões dominantes sobre nossa história talvez pudesse nos propiciar uma primeira resposta: se tivemos nossa "independência", sem precisar expulsar os colonialistas invasores (que, assim, deixaram de sê-lo), inaugurando nosso Estado nacional (monárquico, é certo), sem ter que acertar as contas com o marco geral da América Latina e das potências coloniais, para que introduzir esse marco na análise da nossa história? Se o colonialismo foi contornado por um "acordo de pai para filho", nossos conflitos têm origem e soluções caseiras.
Enfrentamentos com o capital
Mais adiante, o imperialismo foi fator marginal nas grandes visões históricas dominantes. A nossa industrialização foi se construindo nos interstícios deixados pela retração dos investimentos externos -conforme as teorias cepalinas-, sem que fossem necessários enfrentamentos com o capital externo... até que eles se tornaram inevitáveis. Mas aí já estávamos devidamente penetrados por uma industrialização sem tecnologia nacional, centrada na exportação e na alta esfera do consumo. A teoria da dependência de FHC deu continuidade à visão cepalina, em que o imperialismo fica reduzido aos "fatores externos condicionantes", diferença crucial em relação às versões marxistas da teoria da dependência, como as de Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, entre outros.
Assim, a historiografia predominante -apoiada nas interpretações que fluem hegemonicamente na grande imprensa- sempre subestimou a nossa inserção nos sucessivos reordenamentos da divisão internacional do trabalho. Só mais recentemente, quando, à primeira vista, era possível selecionar alguns casos exemplares para fazer propaganda da inevitabilidade dos ajustes fiscais neoliberais, fomos bombardeados com reportagens fragmentárias sobre o México, o Chile, a Argentina. A infelicidade das escolhas parece não impedir que se prossiga no recurso ao mesmo método.
Pela segunda vez a Editora Ensaio publica no Brasil um "Anuário" que pode ajudar a quem queira se contrapor a essa corrente dominante. "O Mundo Hoje" é publicado regularmente na França pela Editora La Découverte (sucessora da François Maspero), tendo na sua coordenação, entre outros, um brasileiro radicado há muito tempo na Europa -Alfredo Valadão, autor do recente "O Século 21 Será Americano"(Vozes)-, que trabalhou durante muitos anos no jornal "Libération". Diria, caso seja necessário fornecer alguma referência, que a orientação geral do "Anuário" é similar à do "Le Monde Diplomatique", embora seus colaboradores não sejam em geral os mesmos. Ambos se situam na corrente antineoliberal, infelizmente pouco presente nos meios jornalísticos de outros países.
O "Anuário" possui um caráter informativo -o que já serve como antídoto para as interessadas versões fragmentárias que campeiam por aqui. Em cada período selecionam-se algumas questões consideradas estratégicas, que são submetidas a uma abordagem inicial. Neste número, privilegia-se, entre outras, as negociações sobre o desarmamento, a busca de uma nova ordem monetária internacional, o intervencionismo nas guerras civis -num marco que toma Washington como o regente da "nova ordem mundial".
Em seguida, selecionam-se 34 Estados que são objeto de análises específicas pela sua importância para a composição de 38 conjuntos geopolíticos -posteriormente enfocados-, nos quais se agrupam todas as regiões do mundo. Na parte final, analisam-se os principais conflitos e tensões do período, as questões econômicas mais importantes, seguidas de um dossiê especial -neste número dedicado à situação das organizações internacionais-, terminando com anexos contendo tabelas estatísticas, relações de organismos internacionais e regionais e índices gerais.
O fato de a imprensa não ter dedicado atenção a um "Anuário" como este fortalece a convicção da pouca importância que ela atribui ao tema. No entanto, uma leitura geral do "Anuário" permite que se tenha uma alternativa às versões que costumam nos passar. Por exemplo, podemos comparar um país como a Coréia do Sul, que teve um desempenho antineoliberal por excelência, e o Brasil, que se desenvolveu ao longo das últimas décadas basicamente sob o influxo de capitais externos e tecnologia importada.
Os dois países tiveram ditaduras militares. Mas, a Coréia -que fez reforma agrária, importou tecnologia em lugar de importar capitais, adaptou-a às suas necessidades, protegeu seus mercados, investiu fortemente em educação e tecnologia- reduziu seu analfabetismo a 3,2%, enquanto nós seguimos com índices cinco vezes maiores. 40% da população coreana tem, pelo menos, 3º grau, enquanto que entre nós esse índice é de 11,7%. Se o Brasil duplicou o número de exemplares de livros publicados entre 1970 e 1993 -tendo diminuído entre 1980 e 1993-, a Coréia multiplicou por 7: publica 30 milhões de exemplares contra 17 milhões entre nós, com uma população que é um terço da nossa. Para não ir muito longe, em pesquisa e desenvolvimento o Brasil investe 0,4% do PIB, enquanto a Coréia investe 1,8%, isto é, acima de 4 vezes mais. Depois de proteger os setores que tecnologicamente lhe interessavam, a Coréia pôde abrir seletivamente seu mercado e compete em ramos como computação, automóveis, telefonia celular e televisores.
O verbete sobre o Brasil, feito aqui mesmo, é unilateral e temporalmente defasado. Para a análise do nosso caso, a própria imprensa nos fornece informação mais qualificada e com maior variedade interpretativa.
Fontes alternativas
Quem se dispuser a surfar pelo "Anuário" encontrará outras surpresas que servem para desmistificar a barreira informativa que as grandes agências nos impõem. O fato de a Editora Ensaio ter feito uma tiragem de 7 mil exemplares demonstra que há um mercado disponível para fontes alternativas de informação sobre política internacional. Tomara que isso possibilite a publicação regular do "Anuário", o que permitiria contar com elementos de análise mais constantes. Aí, embora não deixemos de ser "caipiras", estaremos mais aptos a combinar a "caipirice" com um outro universalismo, não o dos mercados, mas o de uma nova civilização, mais bem-informada e mais capacitada a decidir seus destinos.

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