São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Transformações no sistema capitalista

LEDA MARIA PAULANI

não é tarefa simples resenhar o livro de François Chesnais. Como o próprio título indica, trata-se de uma tentativa de dar conta do conjunto das transformações pelas quais vem passando o sistema capitalista nos últimos 20 anos. Contém, por isso, uma quantidade avultada de informações, resultado da grande experiência acumulada pelo autor como economista da Direção de Ciência, Tecnologia e Indústria da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Espectador privilegiado desses processos, Chesnais tenta interpretá-los sistemicamente, conferindo inteligibilidade a uma série de movimentos de natureza distinta.
Se a profusão de dados e observações dificulta a elaboração de uma síntese que faça jus ao esforço de pesquisa factual empreendido, o eixo da interpretação, porém, é extremamente claro. Logo nas primeiras páginas, Chesnais retoma os termos que recorrentemente aparecem quando se trata do assunto em questão. Fala-se então inexoravelmente de um "mundo sem fronteiras" e de "empresas sem nacionalidade". Sem negar as verdades que eles expressam, Chesnais denuncia, contudo, seu caráter apologético quando -juntamente com o termo "globalização"- são utilizados para dourar de forma idílica esta nova etapa, a qual decorreria precisamente da extensão, para o "mundo sem fronteiras", dos benefícios do círculo virtuoso da concorrência-produtividade-crescimento da riqueza. Bem ao contrário, Chesnais vai demonstrar o sentido exatamente oposto desse movimento.
A menor relevância das fronteiras nacionais e a existência de empresas sem pátria não teriam como resultado a extensão, para todo o planeta, das benesses do dinamismo e do desenvolvimento material e tecnológico propiciados pela economia de mercado. Decorrentes de um profundo processo de centralização e concentração do capital em nível mundial e, fundamentalmente, decorrentes de modificações substantivas nas formas de inserção e operação dos grandes grupos empresariais, tais fenômenos, contrariamente, estariam indicando um visível movimento de estreitamento e afunilamento, não só dos espaços, mas principalmente das populações que são (ou serão) objeto de um desenvolvimento material expressivo.
Em poucas palavras, se há hoje efetivamente um "mundo sem fronteiras", é o capital que o tem nas mãos, é ele o seu criador. A "mundialização do capital" significa precisamente que, hoje em dia, o espaço da economia é o espaço mundial, de modo que os processos econômicos não podem mais ser considerados a partir de suas arenas nacionais. Na etapa anterior, o espaço literalmente inter-nacional da economia podia ser entendido como uma espécie de resíduo e podia ser reduzido, com certa dose de boa vontade, à esfera comercial.
Os traços mais característicos da mundialização, porém, ao contrário do que apregoam os arautos ricardianos da nova era, não estão no comércio internacional, mas na predominância dos movimentos transnacionais de capital e na hipertrofia da dimensão financeira. Eles decorrem, por sua vez, da rápida reorganização dos capitais, o que, na visão de Chesnais, faz com que, nos dias de hoje, seja muito mais importante a noção de grupo (ou de empresa-rede, ou de "cachos" de empresas) do que a noção de empresa propriamente dita. Esse processo só foi possível pela falência do modelo anterior (regulação fordista, controle keynesiano de demanda efetiva, estado do bem-estar social etc.) e pela abertura e desregulamentação das economias nacionais que daí resultaram.
Entrementes, o desenvolvimento tecnológico também contribuiu com seu quinhão, particularmente pela redução dos "custos de transação", propiciada pela evolução da "telemática" (telecomunicações + informática). O que permitiu que se combinasse, ao processo de internalização do capital (constituição dos grandes conglomerados empresariais), também um processo de externalização, que garante a participação e controle de imensas massas de capital, sem que seja necessário arcar com os custos de gerenciamento de megacorporações (em suma, tudo isso teria facilitado um processo de terceirização em escala mundial).
O panorama econômico, portanto, está hoje dominado pelos oligopólios mundiais, que, de acordo com Chesnais, constituem a estrutura de oferta mais característica do momento atual. Tendo conquistado aquilo que mais arduamente reivindicam, qual seja, liberdade incondicional de movimentos, esses grupos delimitam um espaço bem definido e protegido de concorrência, mas também de cooperação, quando isto se faz necessário (por exemplo, para garantir a proteção e a apropriação privada dos benefícios de um bem público por definição, como o é a tecnologia).
Indóceis e fora do alcance das regulações e controles nacionais, esses poucos grupos dominam a economia mundial, comandam setores inteiros e produzem, pela lógica cega que preside a seus movimentos, uma nova situação marcada por deslocalizações industriais ávidas de custos de mão-de-obra reduzidos e desregulados, pelo caráter rentista da riqueza, pela indistinção entre indústria, serviços e finanças e pela dominância inconteste da dimensão financeira do processo de valorização. No que tange a este último fenômeno, aliás, os dados (da OCDE) apresentados por Chesnais impressionam: entre 1980 e 1992, a taxa média anual de crescimento do estoque de ativos financeiros acumulados nos países da OCDE foi de 6%, enquanto que a mesma taxa foi de apenas 2,3% para a formação bruta de capital fixo; de outro lado, o total dos ativos financeiros acumulados por esses mesmos países, em 1992, monta a 35,5 trilhões de dólares, ou seja, mais de duas vezes o valor do produto bruto desses países no mesmo ano e mais de 13 vezes o valor das exportações desse mesmo grupo de nações também no ano de 1992.
Tudo isso vai constituindo uma situação dual, que aponta para um verdadeiro e definitivo apartheid social em escala planetária: de um lado, "aqueles que poderão continuar utilizando os recursos como sempre fizeram" e, de outro, "aqueles aos quais o "modo de desenvolvimento" não reservaria mais do que o direito de assistir, graças às imagens projetadas pela mídia mundializada, como estariam passando os bem-de-vida". Mesmo considerando-se a hipótese (improvável para Chesnais) de que se consiga regular sobre novas bases tal modo de desenvolvimento, a quem poderia ele beneficiar? Sua resposta, assentada no longo périplo empírico-factual-teórico empreendido, não é das mais animadoras: a uma pequena minoria da humanidade, praticamente toda ela localizada nos países da OCDE (por ele denominada de Tríade -EUA, Europa e Japão), eventualmente ampliada para alguns dos novos países industrializados asiáticos e mais alguns poucos países ou regiões do resto do mundo.
Eis por que a leitura do livro de Chesnais é tão desconfortável para aqueles que vivemos no Terceiro Mundo, ou no grupo dos "mercados emergentes", como agora é moda dizer. Façamos um balanço da parte que nos cabe (ou caberá) na decantada "aldeia global". Um primeiro ponto a ser considerado é que os países desse grupo não têm sido o alvo principal do investimento externo direto (IED), uma das grandes vedetes da nova configuração sistêmica. Quando são objeto de tais negócios e quando não se resumem eles a simples operações de aquisição/fusão, vale dizer, quando se trata efetivamente de investimentos criadores de nova capacidade produtiva no Terceiro Mundo, o que os determina é o nível extremamente reduzido dos custos de mão-de-obra aí existentes.
De outro lado, se é indiscutível o aumento do grau de concorrência em cada mercado considerado isoladamente, do ponto de vista global, o resultado é exatamente o inverso, vale dizer, uma concentração dos capitais arranjada sob a forma de oligopólios, a qual deriva precisamente da falência das pequenas empresas e/ou das empresas dos países "pequenos", forçando estes últimos àquilo que Chesnais denomina "processos de desconexão forçada". Para completar o bucólico quadro, ao analisar a problemática tecnológica, Chesnais comenta os resultados da chamada Rodada Uruguai do GATT e conclui que o novo arsenal jurídico, a partir daí criado, "permite às grandes companhias aperfeiçoarem os obstáculos ao acesso à tecnologia", de modo que "países como o Brasil ou a Índia, que tiveram certas veleidades de política tecnológica independente, devem ser definitivamente obrigados a acertar o passo".
Tudo somado, delineia-se o cenário sombrio e desalentador que têm pela frente os países ainda colocados no rol dos "em desenvolvimento". Pessimismo crônico? Catastrofismo? Apocalipsismo? "Apocalipsicose"? Bem, todos esses epítetos podem e certamente serão aplicados ao livro de Chesnais. O desconforto é imenso, repetimos, mas quem quiser apenas confortar-se, deve fechar logo o livro, pôr um vídeo e esquecer-se no sofá. O que não deve mesmo é sair de casa.

Texto Anterior: Vacinophobia
Próximo Texto: Um país sem política externa
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.