São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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O esquecimento do saber

LUCIA WATAGHIN

a relação com os clássicos é sempre um ponto de partida para os novos poetas. No caso de Leopardi, essa relação foi o centro de todas as reflexões: o peso constituído pelas gloriosas origens da literatura italiana foi o primeiro problema enfrentado pelo poeta, que dedicou anos de estudos (aos quais sacrificou a juventude e a saúde, tanto que chegou a defini-los como "mortais") para se apoderar da tradição literária italiana (e latina e grega), para poder reconhecer, no imenso patrimônio acumulado durante séculos, as palavras necessárias à sua poesia.
Para Leopardi, os modernos sofrem de uma espécie de impedimento, criado pelo excesso de modelos, comparações e reflexões: os poetas não são livres para escrever e criar, porque o longo hábito da literatura tornou-os "timidíssimos", porque têm "sempre diante dos olhos os exemplos de quem errou e de quem ainda erra". Por medo de cometer erros, o poeta não se atreve a se afastar dos clássicos e se aventurar em terrenos novos e ainda desconhecidos. A naturalidade dos clássicos comporta erros e defeitos, contrariamente ao que acontece com os melhores entre os modernos: "Enfim, Parini e Monti são belíssimos, mas não têm nenhum defeito...".
Onde procurar a liberdade necessária, a liberdade de usar a "negligente e segura e indiferente, e direi até ignorante, franqueza que é necessária nas sumas obras de arte?"
A teoria do "hábito" de Leopardi responde à necessidade de conciliar a energia criadora com os supremos modelos nos quais se inspira, mas dos quais deve se afastar para poder existir, e explica a perfeita fusão de tradição e novidade que se encontra nas suas líricas mais altas. Para adquirir naturalidade e espontaneidade de expressão, o poeta deve acostumar-se a seus modelos, a ponto de esquecê-los como tais: isto é, segundo a definição de Ungaretti, chegar ao "esquecimento do saber, que nos leva a conhecer um objeto, quando este objeto se torna habitual". Somente por meio da total apropriação de seus modelos, o poeta pode "contrair" originalidade.
Leopardi escreve que seu estilo começa a diversificar-se daquele de Petrarca e, mais tarde, dos vários poetas encontrados em suas leituras, após "ter contraído, multiplicando os modelos, as reflexões etc., aquela espécie de maneira ou de faculdade que se chama originalidade. A originalidade se contrai? E não se possui, se antes não se adquiriu?" A imaginação consiste em se apoderar do existente, dando-lhe uma nova ordem por caminhos associativos e comparativos. O poeta não está livre para criar, se não reconhece o terreno do qual deve partir: "O gênio de qualquer tipo não (é) senão uma faculdade de observação e comparação".
A poética leopardiana do indeterminado também nasce do confronto com a poesia clássica, inspirando-se na idéia da possibilidade de imitar os antigos, introduzindo calculadamente na poesia os "confins" por eles usados espontaneamente: ou seja, os limites à imaginação, com os quais aludiam ao infinito, como os "modernos" já não sabiam mais fazer.
Por seu lado, a língua, para rejuvenescer e se tornar poética, deve pagar suas dívidas com o passado: a língua "elegante" proposta por Leopardi é uma língua rica de termos "peregrinos", termos que já estão fora do uso comum, mas são retomados pelo poeta, que com esse gesto alude aos múltiplos significados que tiveram no tempo (frequentemente com efeito irônico, pois os significados muitas vezes são contraditórios ou opostos).
As soluções oferecidas por Leopardi abrem caminho à poesia européia e, mais diretamente, à poesia italiana contemporânea. Certamente, as consequências mais claramente significativas dos resultados poéticos de Leopardi devem ser procuradas na lírica italiana que começa com Ungaretti. Do exemplo de Leopardi, Ungaretti retoma o caminho, após a "Allegria", para se aproximar da tradição da poesia italiana, cujo canto quer ouvir novamente em seus próprios versos; e, do "Sentimento del Tempo" em diante, é objetivo central de Ungaretti fazer sentir, segundo o ensinamento de Leopardi, a "vida milenária" da palavra em sua própria palavra.
Leopardi constitui um ponto de partida e de confronto não somente para a poesia italiana, mas em geral para toda a poesia contemporânea. O papel de Leopardi como precursor de tendências fundamentais da poesia de hoje é assinalado também por Haroldo de Campos, que, em seu ensaio "Leopardi Teórico da Vanguarda", analisa alguns dos elementos mais inovadores e atuais de sua poética: a idéia da arte como informação original e "improvável", o papel da ilusão na criação poética, o prazer da variedade e da incerteza, o desvio da norma, a teoria da brevidade e da indeterminação e o conceito da imaginação como "a mais fecunda e maravilhosa descobridora de relações e das harmonias mais ocultas".
É raro descobrir ecos diretos dos versos de Leopardi na poesia de outras línguas, mas os princípios poéticos leopardianos que dão início a uma tradição, rompendo com a antiga, são plenamente reconhecíveis na poesia contemporânea. Um mérito do crítico é justamente revelar idéias que já incorporamos, cujas origens esquecemos.
O volume "Poesia e Prosa" salienta explicitamente as relações entre Leopardi e a poesia brasileira. Contém as traduções de toda a poesia e, pela primeira vez em português, os "Pensamentos", uma boa seleção do "Zibaldone" e da correspondência de Leopardi. O esforço editorial é notável, pois, com exceção dos "Opúsculos Morais" (já publicados pela Hucitec/Instituto Italiano di Cultura, em tradução de Vilma De Katinszky) e das líricas traduzidas por Álvaro Antunes, todas as traduções foram realizadas especialmente para esta edição.
Traduzir poesia é notoriamente impossível. Traduzir Leopardi é ainda mais difícil. Em todo caso, a tradução completa da poesia de Leopardi é certamente um evento nas letras brasileiras. O tom e o léxico de Leopardi, para adquirirem naturalidade em outras línguas, exigem um desligamento considerável do texto e uma voz poética segura e original. Provavelmente o sucesso do tradutor depende no máximo grau de sua liberdade, mas as alterações em campo semântico são sempre discutíveis. Penso por exemplo em Alexei Bueno, que oferece soluções surpreendentes, como quando transforma o leopardiano "odo augelli far festa" em um enigmático "ouço a aérea alacridade", ou em Álvaro Antunes que, ao enfrentar a canção "À Primavera" (certamente um dos textos mais herméticos de Leopardi), precisa as imagens leopardianas com vocábulos originais e acentos sensuais (que não são óbvios em Leopardi) e submete o texto a reordenamentos bem-controlados, mas radicais.
Há casos em que a escolha do registro soa estranha ao ouvido: o "peregrino" não pode ser traduzido pelo parnasiano, e o "familiar" vive num equilíbrio ainda mais delicado. Contudo as traduções em geral são de bom nível e evitam erros maiores. A maior falha da edição é a ausência dos poemas em italiano ao lado das traduções, que contradiz justamente um dos principais objetivos deste trabalho, encorajar e facilitar o acesso à poesia de Leopardi.
O livro é enriquecido por um rico e consistente aparato informativo e crítico, que compreende também contribuições de estudiosos brasileiros. No apêndice, intervenções poéticas e em prosa, recriações, citações, alusões, testemunhos da presença de Leopardi na cultura brasileira. Marco Lucchesi esclarece (no espaço concedido pelo seu próprio projeto) alguns aspectos da recepção de Leopardi no Brasil, assinalando os pontos de vista e as preferências dos "recriadores" brasileiros em relação ao poeta italiano. Todo o caráter desta edição, extremamente bem-cuidada, é antecipado pela introdução de Lucchesi, que retoma o título de um projeto (não-realizado) de Leopardi: "Carta a um Jovem do Século 20". Este livro é uma resposta àquela carta.

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