São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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O velho mundo requentado

PAULO VENÂNCIO FILHO

o grande ressentimento do filisteu cultural é o caráter restrito da realização artística: muitos gostariam de ser chamados, mas poucos são os escolhidos. De fato, a arte autêntica e os verdadeiros artistas sempre estiveram ameaçados -com o surgimento da arte moderna e das sociedades democráticas- pelo suposto "campo franco" que se tornou a esfera artística. Com o fim das técnicas e dos gêneros tradicionais tudo enfim poderia aspirar à condição de arte. Nem mesmo o materialismo dos "ready-mades" duchampianos conseguiu encerrar o assunto, ao contrário, tem servido para estimulá-lo. Aliás, existe um retorno cíclico à Duchamp; ele sempre reaparece quando se imagina que foi descartado. Como agora.
O "ready-made", um dos limites do "ciclo de Kontratieff" cultural da arte no sistema capitalista -o ponto da curva onde objeto de arte, produto industrial e mercadoria coincidem-, nada mais fez do que "materializar" todo e qualquer objeto de arte; revelar a sua sanção institucional, seu processo de fetichização, ou seja, desnaturalizar a presença do poder cultural.
Se tudo pode ser arte, todos podem ser artistas. O direito de ser artista se tornou universal. A frustração de não ser também. Pois agora, por meio do multiculturalismo, todas as culturas universais são chamadas ao tribunal da Arte, não para serem julgadas, mas para receberem um salvo conduto universalmente válido, universalmente inconteste, universalmente legítimo.
A julgar pelo catálogo, "Universalis" pretende ser uma exposição que enfoca três questões: a desmaterialização da arte, o processo geral da globalização e o problema das identidades culturais locais vistas de um ponto de vista não-hegêmonico, multiculturalista. No primeiro texto do catálogo, do presidente da Bienal, cujo título imodesto é "Refletindo e Inovando a Maneira de Mostrar a Arte", ele afirma: "Conscientes do fato de que o etnocentrismo euro-americano hoje já está inteiramente questionado, oferecemos o mesmo espaço dos centros artísticos ditos hegemônicos a continentes antes ignorados pela crítica de arte".
O multiculturalismo é funcionalmente, como fragmentada representação ideológica da cultura em processo de globalização, uma estratégia cultural de ataque à universalidade dos valores e critérios estabelecidos pela arte moderna. É o Ego-Ideal culpado do homem moderno e a falsa democracia das representações culturais dos oprimidos, dos periféricos, dos não-hegemônicos. E um já provável futuro candidato a autoritarismo, reducionismo, unilateralismo, com a mesma parcialidade e propensão à hegemonia de toda ideologia cultural. Exemplo: como não existe nenhuma cultura que não seja etnocêntrica, a Bienal consagrada à "desmaterialização" foi buscar, na materialidade cultural institucionalizada, "etnocêntrica", "autoritária", "reducionista" dos grandes e consagrados mestres europeus modernos, uma das suas legitimações culturais.
A "desmaterialização da arte no final do milênio" é o bode expiatório dessa Bienal. Tal processo foi identificado pela crítica norte-americana Lucy Lippard, no seu livro "Six Years: The Dematerialization of Art Object (1966-1972)", e o curador-geral justifica a atual validade do tema ao ter "o orgulho de informar que nenhum dos solicitados declinou o convite, que não foi necessário cogitar outro nome, o que prova de maneira cabal a pertinência da indagação". Verdadeiro c. q. d. (como queremos demonstrar) encomiástico.
Aqui, a irreflexão no uso desse conceito crítico não encontra limites. Num exercício de futurologia regressiva, encontramos, no texto "Universalis 96", a afirmação de Nelson Aguilar de que a "desmaterialização da arte no final do milênio não é somente o tema de uma exposição, mas uma das próprias condições da arte... (e se )... a Bienal ocorresse em 1510, sob a mesma proposta, o curador poderia apor, a uma obra tão alegórica quanto a 'Tempestade', de Giorgione, uma tela etérea como a 'Mona Lisa', de Leonardo Da Vinci". Irreflexão tipicamente ocidental. Mas há também exemplos da abstrusa e inescrutável reflexão oriental, como no conselho de Tadayasu Sakai, curador da Ásia (oriental), aos artistas periféricos: "Somente por algo que ultrapasse a consciência humana que o público pode agarrar o sentimento vivo do que está entre a arte contemporânea e o ser humano". Como o pensamento ocidental não concebe, além de Deus, "algo" que ultrapasse a consciência humana, seria esse o conselho de uma volta à arte religiosa?
Mas quando Aguilar afirma, num dos raros momentos claros de seu texto, que, depois "de 'Les Magiciens de la Terre', o curador que permanece adstrito a seu quintal supostamente hegemônico recebe medalha de honra ao mérito outorgada pela Ku Klux Klan", é que se revela, tão cristalino quanto grosseiro, o autoritarismo do multiculturalista.
Qual é a condição do artista neste fim de milênio? Esta é a pergunta que Agnaldo Farias tenta responder por meio da utilização do conto "A Terceira Margem do Rio", de Guimarães Rosa, como metáfora da situação do artista contemporâneo. A conclusão não avança muito além de certas indagações sobre a precária posição do artista "diante da pluralidade de ambientes deflagrados pelas novas tecnologias" e de como ele "será capaz de resistir incólume, sem se desenraizar, sem se desmaterializar, ao trespassamento por imagens de subjetividades, que, não bastasse a arbitrariedade com que são revestidas, ainda são programadas para durarem não mais do que uma temporada?". E diz que "critérios de ordem geopolítica... a rigor nunca deveriam ter tido o estatuto de categoria epistemológica mediante a qual se pudesse efetuar uma seleção de trabalhos". Critérios afinal não tão caducos assim, pois foram neles -Europa, Ásia, América, África e Oceania-, que os artistas foram enquadrados. E a utilização de um único critério geopolítico unindo Ásia e Oceania por si só revela inconscientemente o preconceito cultural "etnocêntrico" que pretendem superar.
Mari Carmem Ramírez, curadora da América Latina, escreveu o texto "Re-materialização", um dos dois textos culturalmente pertinentes do catálogo; o outro é o de Katalin Néray, curador da Europa Oriental, intitulado, apropriadamente, "Utopia, Ironia e Deslocamento". Ambos discutem problemas culturalmente relevantes: a materialização das questões locais da América Latina por meio dos processos de "desmaterialização" da arte e a questão cultural da "reinvenção da democracia" na Europa Ocidental. Jean-Hubert Martin, curador da África e Oceania, escreveu "O Estranhamento do Outro e a Perversão das Influências Ocidentais".
O texto "O Ouro do Tolo", de Paul Schimmel, curador da América do Norte, é conforme o título, inócuo e irrelevante. Mas Schimmel foi capaz de chegar, segundo o curador-geral, "ao requinte de convidar uma artista que ainda não fez mostra individual". Requinte de irresponsabilidade cultural, devemos reconhecer.
Achille Bonito Oliva e Nicolo Asta, curadores da Europa Ocidental, escreveram o texto "Diáspora 96, uma Arte para Congelar Melhores Tempos", burocrático e enfadonho, repleto de idéias-chavões pós-modernas. Ao menos trouxeram um grande artista, o único da mostra, Luciano Fabro. Mas compensaram, exibindo também as medíocres fotografias de Wim Wenders.
"Universalis" procurou, sem conseguir, escapar ao etnocentrismo hegemônico europeu. O esforço foi tanto que ignorou o Islã, de importância fundamental, nesse final de milênio, e a Índia, multiculturalista há três ou quatro milênios. Só aí esqueceu, talvez, um terço da humanidade. Realizou um esforço para mostrar um novo mundo. Não fez mais do que apresentar, requentado, o mesmo mundo velho de sempre.

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