São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Perfil gastronômico de Picasso, amante da boa mesa

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Era demais este senhor Picasso. Impetuoso, intenso, curioso, toureava a vida com generosidades, exageros, maestrias. Feliz na pobreza e na riqueza, tomando vinho "a la regalade", e ainda por cima "bonitón"...
É claro que se relacionava muito bem com a comida e fez dela tema de quadros e gravuras.
Na primeira vez que foi a Paris, instalou-se no atelier de um amigo pintor, Isidro Noneil. Precisava, no entanto, ganhar dinheiro para se sustentar. Fazer caricaturas em um bar da moda ou seguir uma receita do amigo e vender "dibujos fritos".
Desenhos fritos eram a especialidade culinária do amigo, e o modo de fazer, o seguinte: aquecer no fogo uma frigideira com um fundo de azeite. Jogar aí o desenho e deixar fritar sem parar de sacudir a panela pelo cabo, esperando por uma bela cor dourada.
Quando as beiradas começarem a encolher, retirar do fogo. Obtém-se, assim, um desenho à antiga, patinado ao ponto. Servir aos amantes de antiguidades temperado com pequeno discurso sobre a raridade do achado.
Qualquer biografia de Picasso nos dá a medida de sua sensualidade, de seu amor pelas mulheres, pelos homens, pelos poetas, pela vida, enfim. Nas fotos aparece com frequência à mesa, junto de quadros, confundindo as cores da comida com as da tela, inspirado no amarelo do omelete e no ouro baço do açafrão, no meio de uma bagunça de vida e de arte.
O bando de artistas catalães que chegou a Paris vivia mais nas ruas e nos bares do que nos ateliês gelados onde era impossível cozinhar. O restaurante preferido era o Lapin Agile. Em troca de comida, Picasso fez uma tela grande, que ficou encostada na parede, com ele próprio vestido de arlequim, um copo de absinto na mão, uma mulher ao lado. Ao fundo Frédé, o "patron", tocava seu violão.
Quando o crédito nos restaurantes acabava, havia sempre um amigo com um resto de dinheiro no bolso. Compravam pão e queijo e iam comer num banco de praça. Foi assim que Picasso descobriu, maravilhado, o brie e o camembert bem no ponto.
"Faute de mieux" era preciso voltar para casa e comer as "ratas" de Fernande. No fogãozinho do ateliê ela mantinha uma panela de legumes, batatas, cebolas e feijões. Nos dias gordos juntava um naco de toicinho.
E quando ninguém, absolutamente ninguém, tinha um tostão furado, é que melhor comiam.
Encomendavam um almoço bem bom no restaurante do bairro e marcavam a entrega para o meio-dia em ponto. Quando o entregador chegava e tocava a campainha, ninguém atendia. Se ele insistisse muito, Fernande gritava: "Não posso atender a porta, estou nua. Ponha no chão!". Os amigos chegavam todos depois do meio-dia. Pagavam quando podiam.
Picasso foi convidado a fazer o cenário e as roupas do espetáculo de Diaghilev, "Parade", e conheceu a bailarina russa Olga Khoklova, com a qual se casou. Olga fez uma sala de jantar burguesa e recebia bem, pois as finanças melhoravam. Sabe-se até o que comiam pelas contas dos "troiteurs" parisienses. Acabaram se separando, e Picasso declarou que era um fim inevitável, pois Olga gostava de chás e bolos e caviar e ele, de linguiça catalã e feijões.
Depois da guerra, é com Françoise Gilot que o artista vai retomar o amor à vida. Não contente em amar a comida, vai mexer também com utensílios. Começavam as cerâmicas, os pratos escandalosamente coloridos pintados com peixes e conchas, salsichas e ovos fritos.
Já mais velho, famoso, rico, comia demais e queria forçar comida nos outros, queria que todos gostassem do que ele gostava. A fase passou e, mais cansado, comprou um castelo retratado por Matisse. Morou dentro de um quadro de Matisse, não podia querer mais nada.
Levava vida regrada, com uma ou outra festa de São Silvestre e escreveu no menu: "Príncipe, como é bom viver quando se sabe apreciar os contrários"...

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