São Paulo, sábado, 9 de novembro de 1996
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FHC preferiu conter déficit, diz Jatene

CLÓVIS ROSSI
DO CONSELHO EDITORIAL

Adib Jatene deixou o Ministério da Saúde porque achava "preferível um pequeno aumento do déficit público do que colocar em risco todo o sistema de atendimento à população de baixa renda".
A área econômica do governo tinha outra visão. Recusou-se a liberar o R$ 1,6 bilhão que o ministro reivindicava e criou-se o conflito que levou a seu pedido de demissão, apresentado na segunda-feira.
Esse choque de visões foi exposto pelo ex-ministro à Folha em entrevista concedida na tarde de sexta-feira, na própria sede do jornal.
Jatene evitou, em toda a entrevista, criticar o governo que acaba de deixar e chegou a ironizar a insistência da mídia em obter dele declarações contrárias ao governo.
Diz que sai tranquilo e explica por quê: "Eu não trai os ideais daqueles que lutam pelo sistema público de saúde".
A partir de agora, Jatene diz que vai se dedicar a estudar fontes de financiamento para o setor em que trabalhou a vida inteira.
Os principais trechos da entrevista:
Folha - A sua saída parece ter provocado dois tipos de reações, visíveis, por exemplo, no Painel do Leitor da Folha. Alguns acham que o sr. não passou de um 'chorão' no Ministério, sempre reclamando de verbas, e outros que o sr. foi um herói da militância pela saúde contra a insensibilidade social da área econômica e burocrática do governo. Qual dos dois Jatenes é o verdadeiro?
Jatene - Nenhum. Eu nunca fui o "pidão" que dizem que fui. Eu detectei deficiência financeira e propus, pleiteei, lutei e consegui aprovar (a CPMF, Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, cujos recursos serão destinados à saúde).
Na verdade, nunca fui choramingar deficiências, fui legitimar a reivindicação. E para legitimar a reivindicação, você tem todo um processo de discussão que me custou mais de um ano. Nunca pedi voto para nenhum deputado. Eu ia legitimar e, quando terminava as minhas exposições, dizia: eu não sou "cepemefelista", a CPMF não é meu partido, não é meu clube. É a alternativa que encontrei. Se vocês tiverem outra, coloquem e, se for melhor, aceito. Não houve alternativa que fosse viável.
Quanto ao problema de ser ou não herói, tenho no setor da saúde muitos amigos, que têm acompanhado, ao longo dessas últimas décadas, todo o trabalho feito. O que digo é que saio do governo tranquilo, porque tenho consciência de que fiz o que era possível, lutei honestamente e realmente eu não trai os ideais daqueles que lutam pelo sistema público de saúde.
Folha - Mas as dificuldades que o sr. encontrou para obter recursos para a saúde não são, de alguma maneira, uma traição a um dos cinco dedos da mão espalmada com que o senador Fernando Henrique Cardoso fez a sua campanha eleitoral, sinalizando que uma das prioridades era a saúde?
Jatene - Acontece que o governo não se esgota no setor da saúde. Tem que atender a todos os setores e todos eles estão enfrentando dificuldades. Você não sai de uma inflação de 40% para menos de 1% e nada acontece.
Vou te dar um exemplo bem claro: quando Fernando Henrique era ministro (da Fazenda), o pagamento aos hospitais era feito com 45 dias ou 2 meses de atraso, porque, até apresentar contas, verificá-las e pagar, leva esse tempo. Naquele período, quando se pagava com esse atraso, você pagava metade do que era faturado (porque a inflação comia o resto).
Em compensação, os prestadores de serviço também pagavam os seus débitos com esse atraso. Já com o Plano Real, se você atrasar dois, três, cinco meses, o valor não se perde. Aí se diz -e o próprio presidente diz- que gastava a metade e agora gasta o dobro e nada mudou. Na verdade, não gastou o dobro, gastou a mesma coisa só que, quando ele era ministro, a inflação fazia esse ajuste.
Esse é o problema que o governo está enfrentando agora. As demandas são muitas, os recursos não são suficientes e há uma dificuldade em oferecer todo o recurso necessário.
Eu procurei não só me ajustar aos recursos como busquei uma nova fonte de recursos para suplementar o orçamento do Ministério.
Nesta fase final do ano, a situação se modificou um pouco porque eu tinha no meu orçamento R$ 6 bilhões que foram perdidos porque a CPMF não foi aprovada para vigorar este ano. Não estou pleiteando a recomposição dos R$ 6 bilhões, mas uma recomposição mínima que signifique o que gastei no ano passado mais os 10% ou 12% de inflação. Ou seja, estou tentando trabalhar com o mesmo valor do ano passado, corrigido evidentemente.
Folha - Seria então nessa fase final que se teria revelado uma suposta insensibilidade da área burocrática e econômica do governo?
Jatene - Em vez de insensibilidade, prefiro usar impossibilidade. A área financeira do governo julgou impossível atender a demanda. Na minha visão, existia a possibilidade. É claro que isso representaria um pequeno aumento do déficit público que, na minha visão, era preferível do que colocar em risco todo o sistema de atendimento à população de baixa renda.
Folha - Esse risco é iminente?
Jatene - A perspectiva existe. Eu tenho dito que torço para estar errado. Gostaria muito que o tempo mostrasse que, sem recursos adicionais, o sistema tem condições de se recuperar.
A minha obrigação, como ministro do setor, é alertar para as dificuldades que enxergo. Pode ser que eu esteja exagerando, pode ser que os outros enxerguem diferente. Mas a minha responsabilidade era fazer isso e eu fiz. O máximo que eu podia fazer para convencer era entregar o cargo e eu entreguei, o que prova que eu não estava nem blefando nem fazendo chantagem.
Folha - O problema da saúde no Brasil é um problema de verbas ou também de modelo, de alternativas criativas...
Jatene - É tudo junto. O que o sistema de saúde tem feito nesses últimos três ou quatro anos é uma das mais importantes experiências de mudança de gestão que se faz no mundo.
Nós somos um país federativo em que não há subordinação hierárquica dos três níveis de governo e nós somos um país pluripartidário, no qual as eleições criam conflitos e geram sequelas.
Fazer uma integração dos três níveis de governo, trabalhar em conjunto essa proposta, estabelecer critérios impessoais capazes de fazer funcionar o sistema, foi uma das tarefas mais interessantes nas quais eu me envolvi.
Folha - O sr. esteve duas vezes no Ministério, uma com Fernando Collor e, a outra, com Fernando Henrique. Em qual delas o sr. foi mais bem tratado como ministro da Saúde?
Jatene - A estrutura era diferente. No governo Collor, tínhamos o Ministério da Economia, então eu tratava com o ministro Marcílio Marques Moreira. O Planejamento era uma secretaria do Ministério de Economia, o Tesouro também. De maneira que eu tratava com um interlocutor.
No governo Fernando Henrique, temos o Ministério da Fazenda e o do Planejamento. Aí, você tem que lidar com dois setores. É um pouco mais complicado.

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