São Paulo, sábado, 9 de novembro de 1996
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A reeleição de Clinton e a globalização

RUBENS RICUPERO

Na manhã seguinte às eleições americanas, do meu quarto de hotel em Nova York, onde acabara de chegar, acompanhei as notícias e análises dos resultados na TV. Aparentemente, o encolhimento da dianteira de Clinton nos últimos dias se teria devido ao escândalo das doações financeiras feitas por empresários asiáticos. Tudo teria começado com a participação do presidente na reunião de Jacarta da Apec (Conselho de Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico).
Os comentários coincidem num ponto: mais que o financiamento da campanha, a preocupação de Clinton em Jacarta teria sido reforçar laços comerciais com os países asiáticos, para evitar que os EUA fossem deixados de fora dos planos de integração regional da área mais dinâmica do comércio e da economia mundiais.
O episódio é interessante porque põe a descoberto a essência íntima da globalização: fenômeno no qual elementos políticos e econômicos se misturam e confundem, embaralhando as pistas e tornando possível o que era antes impensável. Quem poderia imaginar, com efeito, que os países do Sudeste Asiático, candidatos naturais a peças da teoria do dominó durante a guerra do Vietnã e totalmente dependente da proteção americana, viessem um dia a exercer tamanha influência sobre a potência hegemônica por excelência?
Dos poucos dias que passei no Brasil ficou-me a impressão de que o debate sobre a globalização está contaminado entre nós por deturpações e falta de clareza. Até certo ponto isso é natural, pois o termo mesmo de globalização possui conteúdo ambíguo e significa muitas coisas diferentes para pessoas distintas.
Há no fundo, porém, dois tipos ou categorias básicas de abordagens possíveis do conceito: a objetiva ou a ideológica. A primeira é de caráter descritivo e fatual, ou, como se diz no jargão acadêmico, positivo, não como juízo de valor, mas no sentido de constatar algo de existente na realidade concreta, algo que é dado ou colocado pelos acontecimentos.
A segunda abordagem é a que busca extrair, dessa realidade objetiva, conclusões normativas, prescrições de políticas a adotar e medidas a tomar em nome de supostos determinismos externos não necessariamente coincidentes com os nossos interesses.
Mesmo na primeira categoria, há quem prefira privilegiar na discussão o componente econômico, empobrecendo, a meu ver, um fenômeno de uma envergadura histórica incomparavelmente mais rica em complexidade.
Deveríamos retornar a Fernand Braudel, que dizia ter ficado inteligente no Brasil, a fim de tentar captar essa verdadeira galáxia de sentidos e eventos com a perspectiva abrangente dos ciclos longos da história. Veríamos então que a globalização é a etapa atual, talvez conclusiva, do processo iniciado cinco séculos atrás com a expansão do ocidente europeu e a afirmação do capitalismo mercantilista por meio das viagens de descoberta das rotas marítimas para a Índia e a América.
Os contemporâneos de Vasco da Gama e de Colombo julgavam que essas aberturas de rotas eram os acontecimentos mais importantes da história, e o mesmo pensava Adam Smith, o apóstolo do capitalismo industrial. Eles não andavam longe da verdade, porque até então a principal característica do mundo era o isolamento e o desconhecimento recíproco, completo ou quase, em que se haviam desenvolvido os grandes ramos da civilização humana, a Europa, de um lado, a China, a Índia, o Islão, os reinos africanos, as culturas americanas pré-colombianas, do outro.
As novas rotas mercantis marcaram o começo do fim desse isolamento, por bem e, mais frequentemente, por mal. A sede de ouro, a "vã cobiça", inauguraram um rosário interminável de opressão e dominação, de exploração impiedosa e tráfico de escravos, de imperialismo e violência. Assinalam, porém, ao mesmo tempo, a unificação do espaço humano, o fim de 5.000 anos de solidão.
Mais do que a lógica irresistível dos fatos econômicos, como pensam alguns, a unificação planetária é, na sua origem a essência, o resultado de forças políticas e, acima de tudo, culturais, como veremos na próxima semana.

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