São Paulo, sábado, 9 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Morte do pedreiro acaba em promoção

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Finalmente, desde o dia 16 de julho passado, quando ocorreu o atropelamento e morte, em Brasília, do jovem pedreiro Elias Barboza de Oliveira Júnior, vi uma notícia no jornal recapitulando o caso. A notícia, aliás, era mais sobre o seu atropelador, Fabrício Klein, 18 anos, filho do ex-ministro Odacir Klein.
A notícia a que me refiro menciona o laudo do Instituto de Criminalística enviado à Polícia Civil. O laudo, por sua vez, confirma que Fabrício estava em excesso de velocidade quando atropelou o pedreiro.
Fabrício, aliás, tinha tomado umas cervejas num churrasco e, um tanto acelerado, acelerou o carro além do permitido. Talvez até tenha sido advertido pelo pai, que estava ao seu lado, no assento do carona. Além de pai de Fabrício, o carona, acrescentemos, era uma espécie de pai simbólico de todos os motoristas do país, pois ocupava o cargo de ministro dos Transportes.
O pedreiro Elias Júnior, de 24 anos, foi violentamente derrubado pelo Fiat que Fabrício dirigia. Morreu na hora. Fabrício não parou o carro, não tentou saber o que teria acontecido com Elias, não comunicou nada à polícia, a ninguém.
Além dele próprio, só quem soube do acidente foi seu pai, o ministro. Que também não disse nada à polícia ou a quem quer que fosse. Tratou de ir para casa com o filho e calar a boca. Limitou-se a pedir a um genro que fosse ao local do atropelamento e trouxesse notícias.
O genro foi, viu os guardas atordoados, sem saber como se dera o acidente, a morte. E o genro voltou com essas notícias, sem nada dizer à polícia.
Ao que tudo indica, em suma, ninguém no país jamais ficaria sabendo que o jovem Fabrício Klein (que aliás já estivera envolvido antes num acidente de trânsito) atropelara o pedreiro Elias Júnior. Nem, muito menos, que o ministro dos Transportes se omitira por completo. O atropelamento com morte ia ficar sem culpado. Só com a vítima.
Acontece que um advogado de Brasília, Ulisses Borges, presenciou o acidente e perseguiu o carro que fugia até anotar o número da placa. Graças à informação do advogado é que a polícia chegou ao culpado. Aos culpados, pois, no caso, a culpa do ministro Klein não pode ser exagerada.
Milhões de telespectadores devem ter visto, como eu vi, o ministro transtornado, rubro e em lágrimas, não porque o pedreiro tivesse sido atropelado, e sim porque Fabrício, seu filho, ia passar maus bocados se identificando, se explicando, se justificando.
Confesso que as lágrimas do ministro omisso por causa do filho travesso me deixaram de estômago embrulhado. Apesar de estar falando comigo mesmo, acho que fiquei um tanto retórico.
Que país é este, perguntei, em que um ministro, em lugar de pedir perdão à família do pedreiro morto, de pedir perdão aos telespectadores por não haver socorrido a vítima e por não se haver demitido de pronto do cargo, como conivente e penitente, vem, apenas, lamentar que o filho vá aparecer nos jornais e se amolar muito, porque, dirigindo em excesso de velocidade, atropelou um homem e nem sequer parou o carro e saltou para ver o que acontecera?
O país a que eu me dirigia era, naturalmente, ele mesmo, o nosso Brasil, onde os que vivem na área do poder acham que não têm que justificar nada do que fazem.
O consolo que tive então foi ler em "O Globo" (23 de outubro passado) um artigo de Elio Gaspari intitulado "O desvio da História do pedreiro Júnior".
O artigo poderia se chamar "Pavana por um pedreiro defunto" e entrar no currículo das escolas de jornalismo. Isso porque, do ponto de vista técnico, o texto cobre todas aquelas exigências de informar ao leitor "o quê", "quem", "quando", "onde", "como" e "por quê".
E Gaspari pôs tudo isso debaixo de uma epígrafe de Fernando Henrique Cardoso e enterrou o pedreiro, originário do sertão pernambucano, envolto em mortalha tomada a versos de "Morte e Vida Severina".
Bom. Ainda não se sabe como o jovem Fabrício Klein vai sair do processo em que, caso seja condenado, pode pegar de um ano e quatro meses a três anos de prisão por homicídio culposo qualificado.
Imagino que Odacir Klein também poderia ser envolvido no processo, pois não só estava ao lado do motorista como tinha no bolso telefone celular e não fez qualquer pedido de socorro quando assistiu ao atropelamento e morte do pedreiro.
O que se sabe é que Odacir Klein foi tratado pelo presidente da República e seus colegas de Ministério com grande respeito e ternura. Por intermédio de assessores, o presidente Fernando Henrique fez saber ao ministro, logo depois do acidente, que "essa fatalidade em nada atinge suas ações à frente do Ministério".
A frase me pareceu enigmática, por dois motivos. O primeiro é que qualquer ministro devia ser censurado pelo presidente por não haver denunciado à polícia o atropelamento e, sobretudo, por não haver sequer tentado socorrer a vítima. O segundo é que, repitamos, o ministro era o dos Transportes.
Inspirado, talvez, na frase ambígua do presidente, o deputado Michel Temer, líder do PMDB, pronunciou outra frase, talvez ainda mais significativa por baixo do seu verniz de enganosa banalidade: "O ministro tem um passado que o recomenda para o futuro".
Mas tudo em breve ficou esclarecido, marchando-se para o final feliz preparado por tantas fadas poderosas. Odacir Klein pediu discreta demissão do seu posto de ministro, passando, sem escalas, a chefiar no Congresso a comissão da reeleição do presidente da República e demais ocupantes de cargos executivos.
O convite, feito pelo deputado Temer, foi prontamente aceito por Klein. Chefiar a comissão da reeleição é o cargo da moda, a menina dos olhos do governo.
"O ministro tem um passado que o recomenda para o futuro." Interpretando, em algum desenho gracioso, essa frase do deputado Temer, um bom caricaturista encontraria talvez a forma de mostrar como devagar se vai ao longe, mas em excesso de velocidade se vai mais longe ainda.

Texto Anterior: Welles faz guerra secreta
Próximo Texto: Gil faz show beneficente no Anhembi
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.