São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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A igreja universal dos pessoanos

ADRIANO SCHWARTZ
DA REDAÇÃO

Apesar de não se considerar um especialista em Fernando Pessoa, o ensaísta, crítico literário e filósofo português Eduardo Lourenço, 73, é, certamente, um dos maiores conhecedores da obra do autor, além de ser um de seus mais apaixonados leitores.
Lourenço escreveu sobre ele "Pessoa Revisitado" -livro que a crítica Leyla Perrone-Moisés (autora de "Aquém do Eu, Além do Outro", sobre Pessoa) apontou como o mais importante já escrito a respeito do poeta. Ele também publicou "Fernando - Rei da Nossa Baviera" e vários ensaios que tratam de Pessoa em livros como "Poesia e Metafísica" e "O Canto do Signo".
Na entrevista a seguir, concedida na última vez em que esteve no Brasil, em agosto, para a Bienal do Livro, o ensaísta, que mora já há muitos anos em Vence, na França, comenta, entre outros assuntos, a influência de Pessoa na literatura portuguesa e a seita que se formou ao redor de seu nome, que Lourenço compara à Igreja Universal do Reino de Deus.

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Folha - Como surgiu "Pessoa Revisitado"?
Eduardo Lourenço - Eu não me considero especialista em Fernando Pessoa. Não quero ser especialista em uma pessoa cuja obra para mim não é objeto de exploração nem universitária nem de coisa nenhuma. Fernando Pessoa é uma paixão, paixão daquelas que a gente apanha quando tem 20 e poucos anos. Fiquei por muito, muito tempo com essa paixão, sem escrever uma linha só sobre Fernando Pessoa. Não queria fazer um trabalho universitário sobre Fernando Pessoa. Ao mesmo tempo, eu falava, sobretudo com a minha mulher, sempre sobre Pessoa. Até que ela disse: "Ou escreves um livro ou isto vai mal". Então eu escrevi, de fato, em pouco tempo, "Fernando Pessoa Revisitado".
Era uma revisitação do discurso que estava se formando naquele momento sobre Fernando Pessoa, das interpretações que estavam sendo dadas, que, ainda, eram muito poucas. Quando escrevi esse livro, era possível reler os outros, inscrever a leitura dos outros na minha própria. Hoje em dia é impossível fazer isso, o discurso sobre Fernando Pessoa se tornou um mar em que todos os gatos são pardos. É uma repetição de coisas que já estão ditas e reditas, mas eles pensam que estão fazendo algo novo.
Folha - Como o senhor vê a influência de Pessoa na literatura portuguesa?
Lourenço - O reinado de Fernando Pessoa, a hegemonia de Pessoa está, paradoxalmente, na ficção: José Saramago, Augusto Abelaira, Vergílio Ferreira -que tem uma textualidade que só é possível de ter existido depois de Pessoa. A marca dele é tão intensa que se transformou rapidamente num mito da cultura portuguesa. As citações de Pessoa são muitas vezes compreendidas até mesmo ao contrário, mas, pouco importa, de qualquer modo cita-se. O que importa é citar Fernando Pessoa, pôr epígrafes de Pessoa. Não se quer saber se uma coisa é de Bernardo Soares, dele próprio etc.
O que me parece mais interessante em relação a Pessoa, porém, foi como ele se transformou não somente em objeto de um canibalismo, de uma apropriação textual, mas, muito mais sutil, como ele foi pouco a pouco esvaziado de todo o seu conteúdo de subversão -no sentido mais profundo do termo, de inquietação, de trágico- para ser assimilado aos heróis culturais nossos, que são todos heróis de extrema positividade: Fernando Pessoa hoje é o Fernandinho.
Numa operação muito complexa, muito sistemática, ideológica, tudo aquilo que na minha geração -e em particular para mim-, tudo o que tornou Pessoa importante, imprescindível, toda essa desmistificação profunda do tecido cultural português, do imaginário português, dos valores; toda essa desconstrução que a obra do Pessoa, do Álvaro de Campos, do Caeiro etc. e, em outros termos, do Soares do "Livro do Desassossego"; todo esse espaço que não tinha inscrição no conjunto, no movimento geral da cultura portuguesa, foi escamoteado e hoje está completamente normalizado.
Hoje a igreja Pessoa é uma Igreja Universal do Reino de Deus, é do mesmo estilo, uma idolatria, da essência a mais antipessoana que se possa imaginar, hoje é isso o pessoanismo. É brutal o que digo, mas é assim que penso.
Folha - A questão do ocultismo, do nacionalismo...
Lourenço - Não é que esses momentos não existam no Fernando Pessoa, mas são apenas um de seus mundos. Isto é de muita importância: Pessoa ser fundamentalmente o hermetista, o ocultista e, sobretudo, o homem do Quinto Império para toda espécie de serviço -ideológico, histórico e, sobretudo, para uma leitura feita em função do nacionalismo mais chão, mais tradicional.
Atualmente, Fernando Pessoa é, de um lado, uma das estrelas fixas da nossa literatura -Camões e Pessoa, ponto final- e, por outro lado, ele não tem hoje aquele tipo de leitura fascinada de uma geração que estava descobrindo de fato um continente totalmente novo. Hoje, Pessoa é um continente devastado.
Folha - Em que os livros de inéditos que estão surgindo ajudam no conhecimento de Pessoa?
Lourenço - Na minha opinião, em nada. Nada, senão o jogo cultural e universitário. Podia acontecer, milagrosamente, que aparecesse algum texto que trouxesse efetivamente um outro Pessoa. De resto, coisa muito curiosa, acho que o João Gaspar Simões tinha razão de dizer -tirando, de fato, um livro muito importante, o "Livro de Desassossego", que não era conhecido- que o essencial já tinha sido publicado em vida de Fernando Pessoa. De forma pouco visível, dispersa, mas já publicado.
Folha - Por que em um país com tantos estudiosos de Fernando Pessoa, como o Brasil, os seus livros não são conhecidos?
Lourenço -Nem em Portugal. Eu não vivo em Portugal, não sou ficcionista. Meus livros são fundamentalmente para um público universitário e ali circulam um pouco. Eu próprio contribuí para essa situação, sou muito preguiçoso. Deixo o livro para a editora e não o sigo, não faço nada.
Em última análise, porém, o que importa para quem escreve é a espécie de leitor, a qualidade de leitor. O importante é quando um leitor entra em diálogo por conta dele com a obra e, partindo dali, ele próprio vai escrever outra coisa. Isso, sim, é uma coisa criativa, o livro encontrou seu destinatário.

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