São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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A educação dos sentimentos

PETER GAY
ESPECIAL PARA O "NYT BOOK REVIEW"

Theodore Zeldin é o mais ambicioso dos historiadores sociais. Na maior parte, sua imaginação acadêmica foi exercitada a respeito da França moderna; sua obra mais conhecida, "France: 1848-1945", é um estudo enciclopédico desse país, ao mesmo tempo ousado, enormemente informativo e de certa forma caprichoso, ao saltar para a frente e para trás no tempo. Os dois volumes de texto utilizam romances, pesquisas de opinião pública, estatísticas, autobiografias, textos médicos, peças de sabedoria e outros testemunhos mais ou menos esotéricos da história cultural, para tentar obter nada menos que um retrato da personalidade francesa no amor, no trabalho, com os filhos, na arte e na política.
Agora, em seu novo livro, Zeldin, que é historiador na Universidade de Oxford, anuncia que atirou sua rede mais longe que nunca. Mas chamá-lo de "Uma História Íntima da Humanidade" é atrair acusações de publicidade falsa.
A humanidade vem a ser a humanidade francesa -virtualmente todas as vinhetas de pessoas vivas que abrem cada capítulo são de mulheres francesas.
Zeldin tem consciência disso, e o justifica apelando para Freud, que, ele argumenta (sem total correção), "escreveu sobre a humanidade com base em encontros com pacientes que eram, na maioria, de um único país". A França se revela para Zeldin como o laboratório ideal para se descobrir "o que resta aos seres humanos fazer". Rica, livre, favorita dos turistas, a França é também conveniente: a terra que Zeldin tornou sua especialidade há vários anos. Nas vastas e às vezes inchadas bibliografias que agrega a cada capítulo, ele enumera -com uma ou duas exceções- apenas títulos em inglês e francês.
Pela "história" do título, Zeldin oferece uma coleção de fatos vagamente relacionados, embora relevantes, anedotas e ruminações extraídas de um impressionante cardápio de fontes secundárias que vagueiam pelo globo e pelos séculos. Nesses ensaios, ele se apropria dos materiais onde quer que se encontrem. Ao discutir a solidão, por exemplo, cita o eloquente bispo francês do século 17, Bossuet; falando dos progressos na vida sexual, afirma casualmente que o Don Juan original era homossexual; defendendo a tese de que novos medos despertam quando os antigos se dissipam, ele dedica três páginas aos viquingues dos séculos 8º ao 12. Tudo isso para explorar o passado como um sótão lotado de coisas fascinantes.
Com certeza seu livro é íntimo. A estratégia de Zeldin, como se poderia esperar, é muito original. Ele relata conversas que teve com mulheres francesas ao longo dos anos, preenche os detalhes das vidas dessas testemunhas e então tece um comentário em torno das histórias que lhe narraram. Isso não é tanto história, como uma ruminação sobre a vida por um historiador que tem um público formidável. Se uma construção tão fresca vai além da excentricidade, ou se funciona para apoiar uma discussão genérica, dependerá da qualidade da sabedoria.
Os títulos informais dos capítulos demonstram que Zeldin busca nada menos que os fundamentos da experiência humana: esperança e desespero, amizade e solidão, sexo e amor, preconceito e tolerância, os prazeres e as dores do trabalho e do casamento contemporâneo. Um título de capítulo diz: "Como as Pessoas em Busca de Suas Raízes Começam a Enxergar Longe e com Profundidade". Outro, à maneira característica de Zeldin, combina duas essencialidades humanas díspares: "Por Que se Pensa Mais em Culinária do que em Sexo". Um terceiro, um tanto surpreendente, vai contra os "dictums" de gurus modernos como Michel Foucault:
"Como o Respeito Veio a Ser Mais Desejável que o Poder".
Muitas das mulheres que se abriram a Zeldin nas entrevistas confessam que vêem a si mesmas nos termos mais sombrios possíveis. "Minha vida é um fracasso", insiste a primeira, uma empregada doméstica de 51 anos. "O fracasso me persegue", diz uma costureira. Outras dizem mais ou menos a mesma coisa com palavras muito semelhantes. Um dos capítulos de Zeldin intitula-se "Por Que até os Privilegiados São Muitas Vezes Sombrios Acerca da Vida, Mesmo quando Têm Tudo o Que a Sociedade de Consumo Lhes Oferece Depois da Liberação Sexual". Até os vencedores falam como perdedores no desfile de Zeldin.
No entanto, apesar de todas as evidências que recolheu, Zeldin vê -ou melhor dizendo, procura- motivos para ser cautelosamente otimista sobre a empreitada humana. Algumas de suas informantes leram Freud, que as ajudou a descartar ilusões alienantes. Zeldin também, ao que parece, empregou os escritos de Freud com bom propósito: serviram para pôr em cheque seus desejos utópicos. Pois a mensagem que ele pretende transmitir é de confiança, uma confiança que sobrepuja a depressão: homens e mulheres, diz ele, só agora estão aprendendo a falar seriamente uns com os outros; a autêntica igualdade exige a consciência -que está raiando- de que a tolerância mútua não basta. "A era da descoberta mal nasceu", observa no último capítulo, um resumo do material coletado.
Nas páginas finais do livro, Zeldin fala com sua própria voz, descartando o formato de entrevista. Até mesmo um assassino, ele sugere na vinheta final, pode aprender a ser humano; e ser humano é ser capaz de ajudar os outros, não para seu próprio bem, mas pelo bem dos outros.
"Está ao alcance de qualquer pessoa, com um pouco de coragem, estender a mão a uma pessoa diferente, escutar e tentar aumentar, ainda que em pequena quantidade, a bondade e a humanidade no mundo", escreve Zeldin. Ele está convencido de que o verdadeiro altruísmo, distintamente do desejo de marcar o mundo, pode tornar a vida melhor. Mas ele não pretende ser considerado ingênuo. "A história", escreve, "com sua interminável procissão de passantes, para quem a maioria dos encontros foram oportunidades perdidas, é até agora, de modo geral, uma crônica de capacidades desperdiçadas. Mas na próxima vez em que as pessoas se encontrarem o resultado talvez seja diferente. É essa a origem da ansiedade da esperança, e a esperança é a origem da humanidade."
Antes de descartarmos essa feliz conjectura como uma versão atualizada de Norman Vincent Peale, como uma espécie de receita simples de aperfeiçoamento pessoal e social por meio do pensamento positivo, vale a pena lembrar a deprimente documentação sobre o passado que Zeldin reuniu capítulo após capítulo. Lemos sobre a instituição da escravatura, que assombrou a maioria das civilizações, sobre a persistência da guerra, diante de sonhadores que tinham certeza de que a guerra não era mais uma opção possível, sobre a descoberta de novos medos quando os antigos são abandonados. Lemos sobre libertações, como a revolução sexual do último meio século, que geraram tantos problemas quantos solucionaram.
Zeldin não apregoa que os males estariam prestes a desaparecer, que ao se aprumar puxando os próprios cordões emocionais a humanidade seria transfigurada. Isso pertence, se a alguém, aos teóricos progressistas do Iluminismo. Ele é um Condorcet contemporâneo, cujo importante ensaio sobre o progresso humano, "Esboço Para um Retrato Histórico do Progresso da Mente Humana", é muito citado e pouco lido. Condorcet, longe de confiar irresponsavelmente num aperfeiçoamento fácil, jamais subestima a crueldade, a ignorância, a superstição, a completa miséria que há muito recobriu, e ainda recobre, o dito mundo civilizado.
Em grande medida, o que dá às meditações de Zeldin o direito a nossa atenção é seu estilo. Ele relata suas conversas com brio, ajustando o tom de acordo com suas informantes; essas mulheres emergem como seres tridimensionais que, apesar de todo o seu medo e seu senso de derrota, exibem uma atraente vitalidade. São pessoas que gostaríamos de conhecer.
O interesse dessas vinhetas apenas aumenta por Zeldin ter traçado um amplo espectro da população francesa (editoras, escultoras, psicanalistas, empregadas, escolares, donas-de-casa, executivas, tanto ativas como aposentadas) e por ter feito até as desarticuladas falarem. Ele vê suas pessoas com simpatia, nunca as julga, mas também se recusa a ser sentimental. Joga limpo -apesar de os homens aparecerem apenas como reflexos, nos elogios que as mulheres lhes fazem.
Suas excursões pela história são igualmente enérgicas, mas me parece que a contribuição destas a seus argumentos e a sua capacidade persuasiva dependem largamente do interesse e da boa vontade do leitor em ser persuadido.
Afinal, Zeldin vaga com grande liberdade -dos antigos filósofos gregos aos novelistas japoneses modernos, dos biólogos franceses aos sábios chineses, dos imperadores romanos aos diretores de cinema contemporâneos. Sem dúvida, cada uma dessas excursões é relevante para os temas; Zeldin, com toda a sua informalidade, não se permite livres associações. Mas o que os leitores farão com suas idéias sobre solidão, culinária ou desigualdade permanece um tanto incerto.
Não obstante, Zeldin engajou-se numa experiência filosófica digna de ser tentada. O que ele pede a seus leitores é que dêem um voto pascaliano à bondade e à civilidade. A agressividade humana ainda poderá desmenti-lo; mas o que temos a perder apostando no futuro?

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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