São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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As coisas simples de João Antônio

FERNANDO PAIXÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

João Antônio, caro,
Rente ao despertar de uma manhã a mais em dezembro, só que desta vez pálida, introspectiva, desenhando no corte do horizonte uma infantil imprecisão de nuvens, tomo novamente nas mãos a tarefa de dizer algumas palavras sobre os contos de "Malagueta, Perus e Bacanaço". Já outras vezes tentei alinhavar idéias sobre o livro, mas percebi-me em falsete, e é o que menos desejo aqui. Daí eu te escrever sob a forma de carta pessoal -desvio que não deixa de estar motivado pelo laço da amizade que nos une.
Nessa trilha, começo por rememorar um certo encontro domingueiro, ocorrido há alguns meses, e que enveredou por uma deliciosa peixada num restaurante do centro de São Paulo. Ao chegar à entrada da estação de trem Julio Prestes, como combináramos, retardei os passos para te observar de longe: caminhavas lentamente, interessado nos sinais em volta. Várias bancas de camelôs perfiladas vendiam frutas e pilhas de rádio, tênis e bichinhos de pelúcia; estava um dia fraco até para os pequenos negócios, e pelo rosto dos vendedores e dos vagabundos, junto à gritaria de algumas crianças, era possível perceber ali uma paisagem bem brasileira.
Tomei aquela cena como flagrante de tua oficina pessoal. Uma certa "flânerie" mundana, o gosto de olhar livremente as pessoas anônimas e deixar acontecer por elas um sentimento atávico, uma intuição que faz vasculhar personagens e imagens. Tua literatura desenvolve muito desse "interesse", é notório, em contos que almejam produzir uma alquimia semelhante no leitor.
Se corrermos a tua obra, colheremos muitos exemplos, mas sem dúvida o "Malagueta, Perus e Bacanaço" continua ocupando lugar de honra, não só dentre os teus livros como na história recente da nossa literatura. São várias as qualidades ali reunidas; desde cedo fixou um estilo próprio, com a sabedoria de não cair em afetação popularesca, nem de se atrair pelo maneirismo rebuscado. Teu objetivo ia além, mais fundo e sincero, se é que ainda se pode hoje recorrer a termos tão gastos.
Ao reler os contos do "Malagueta", resvalamos por diversas composições de caráter. Mas, como não sou adepto de cirurgias demasiado racionalistas sobre os textos, me é difícil tentar explicar a operação exata de tuas histórias. Prefiro continuar a linha pessoal e discorrer sobre algo que me chama atenção no livro e me faz apreciá-lo tanto. Abro as páginas ao acaso e constato: num dos contos, a atenção minuciosa sobre uma xícara de café; no outro, os sapatos empoeirados... Folheando novamente: numa página, o contorno azul no prato de arroz e feijão; mais adiante, a cortiça escondida na tampinha de água mineral...
Prezado amigo, não é pequena a tua coragem ao escrever sobre as pessoas comuns. A observação sensível se transforma, em tuas mãos, num desafio de expressão, impulsionado por uma ambição santa e legítima de querer trazer para o texto uma palpitação emprestada da realidade. Cenário para a investigação não te falta: os miseráveis e as crianças das praças, os vizinhos da casa de tua mãe em Presidente Altino, ou os solitários que esperam à noite a chegada do trem de subúrbio na plataforma. A eles os teus olhos perguntam; dum rosto qualquer pode vir um personagem, uma frase, um conto. Tropeçando em detalhes modestos e ordinários, os teus homens e mulheres simples terminam capturados em rabiscos biográficos que acenam com a experiência do vivido e suas marcas.
Há um certo afrontamento nessa difícil opção. Para ficar aderente à vida, o escritor vasculha o pequeno cotidiano e exige da palavra escrita uma ressonância dramática. É certo que as pequenas coisas, desde que sejam tratadas com arte, possibilitam uma revelação de destinos. Justamente porque são pequenas e aparentemente insignificantes, elas contribuem para desenhar o contorno do personagem, dando-lhe uma nitidez que extrapola a condição de excluído social. Engenhosa transmutação, sem dúvida. Onde seria natural deparar com a universalidade de um tipo humano, cuja pobreza ou malandragem já antecipam estereótipos, o leitor encontra, ao invés, um desenho "sui generis", que é ao mesmo tempo testemunho de uma intensidade particular:
"- Vicente, olha a galinha na rua!
Abri o portão, a galinha para dentro. Mamãe tinha o avental molhado no tanque. Um balde pesava no braço carnudo.
- Deixa qu'eu levo.
Derramei, fiquei olhando a água no cimento. Aquilo estava era precisando de uma escova forte. Começo de limo nas paredes. Sujeira. Quando voltasse daria um jeito no tanque. As manchas verdes sumiriam.
- Vai sair já? Espera o sol descer um pouco".
A maneira da montagem de recortes, as frases se sucedem por superposição. Dispensando as coordenadas explícitas de espaço e tempo, a situação emerge delineada por uma eleição de fragmentos vários, ângulos de uma realidade fisgada por atenção às coisas: a galinha, o avental, o braço, a água... são detalhes do ambiente que, ao mesmo tempo, configuram o foco de interesse do personagem-narrador. Neste caso, o tema geral é o da "busca" (título do conto), voltado ao retrato dos dilemas de Vicente, que não se resolvem, transformando-o em vulto desalinhado, perdido em largas caminhadas pela cidade.
Também nos contos mais narrativos, como o que dá título ao livro, o procedimento se mantém. Ao entrecruzar comentário e descrição ou diálogos com o pensamento dos personagens, o modelo geral continua sendo o de montagem, enriquecida por uma descrição animada dos salões de sinuca. Aqui, porém, é maior a complexidade. Jogadores distintos, em estilo e personalidade, estabelecem a cada cena um ângulo novo para o antagonismo que os mobiliza. No centro, como num efeito em espiral, prevalece o movimento das bolas de bilhar.
É curioso observar como a apresentação do trio principal transcorre de par com o ritmo do jogo. A frase curta, compassada pelo uso preciso de adjetivos, busca dar conta do tramado que envolve o confronto dos heróis-malandros, à maneira de uma pequena odisséia que se resolve na precisão das tacadas. Mesmo a surpresa final, com a derrota de Malagueta frente a Robertinho, faz o texto devolver a condição humana àqueles que triunfavam. Vencer e perder tornam-se provisórios: a balbúrdia da noite, o aglomerado de assistentes em meio à fumaça, o rolar da mesa, tudo serve à aprendizagem dos homens.
Pois é justamente por estar atento a essa lição -desdobrada numa sutil compaixão pelos personagens- que a tua escrita, João Antônio, não se dispersa. Límpida e severa, ela se atém a coletar sinais do imediato do mundo: "Só um sujeito como eu, homem se atilando naquilo que faz, pode avaliar um chute digno para determinadas tampinhas. Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais. Para algumas que vêm nas garrafas de água mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce chutá-las bem baixo, para subirem e demorarem no ar". Do resvalo semântico, o texto retira um efeito de permanência poética que o leitor compartilha com intimidade sensorial.
Isso explica, em parte, por que "Malagueta, Perus e Bacanaço" pode ser considerado obra-prima. Seu segredo está mais à vista do que aparenta inicialmente. Passadas mais de três décadas desde o lançamento, a ousadia da linguagem e o frescor do lirismo deste livro permanecem atuais. Sua força, porém, não pode estar apenas associada ao pitoresco da classe popular, ou a um mostruário dos tiques da malandragem. A meu ver, o melhor de tuas páginas está representado num centro irradiante, que olha para o cotidiano e destrama o colorido da realidade por meio de pinceladas curtas e seguras.
Todos os detalhes, quaisquer que sejam, contribuem para o todo. Talvez por isso, para fugir do estigma ideológico que tanto conforma a leitura dos teus textos, o que me vem à cabeça, por comparação (um tanto imprevisível), são justamente os jogadores das telas de Cézanne. Também ali há um clima sutil e dramático, capturado num meio-tom de equilíbrio entre o instantâneo e o eterno. Imagino que você bem saberia, entregue ao jogo perigoso das palavras, dar visibilidade literária aos rostos e às roupas daqueles personagens. Dá para entender?
Relendo as tuas páginas, não há como escapar. A identificação pessoal retorna. Lembro também eu dos domingos da periferia em que vivi, onde igualmente as coisas simples tinham vez; era o alarido das crianças nos corredores estreitos de cimento, o marceneiro descansando depois do almoço na amurada do portão de ferro, a moça de saia rodada pisando a ladeira de terra. Tristeza e alegria misturavam-se, de tal modo que nem dava para sentir uma sem a outra. E a mãe dizendo: "Ó menino, vem pra mesa que a sopa está esfriando".
Só quando crescemos, e abraçamos a missão de escrever, é que vamos nos indagar com que palavras se podem fixar esses momentos. Vasculhamos, revolvemos, equilibramo-nos precariamente nas frases. Como nesta carta, que já está longa demais, como nesta manhã, ainda sem nome. O tom cinzento do céu impede qualquer precisão mais confortável. O melhor então é desviar os olhos e atentar para a árvore da rua visível da janela. Sua copa tem falhas entre a folhagem; apesar do porte grande, a evidência dos galhos finos empresta-lhe uma certa fragilidade, deixa-a diferente das outras. Que dizer então? Como dizer?
Aprendo contigo, João Antônio, que a cor e o volume das pequenas coisas só chegam ao texto pelo esforço da atenção sensível -atitude cada vez mais rara em quem escreve, convenhamos.

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