São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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Os sacrifícios da impureza

PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma das maneiras mais fáceis pela qual os indivíduos numa certa cultura podem se diferenciar dos indivíduos de uma outra qualquer está em chamá-los de sujos. O Brasil e o Reino Unido não são exceções. Os brasileiros consideram-se campeões mundiais em número de banhos por dia, e Gilberto Freyre inseriu uma discussão das modalidades do banho -"de rio, de banheira ou sentado"- em sua história social do Brasil. No século passado, as exportações britânicas para o Brasil incluíam banheiras, lavatórios, sabão transparente e uma substância chamada Odonto, para higiene bucal.
Caso o leitor esteja pensando que se trata de produtos apenas para exportação, vale lembrar que Hippolyte Taine, visitando a Inglaterra oitocentista, impressionou-se com o número de banheiras e lavatórios que encontrou, enquanto um crítico germânico, Hermann Treitschke, acusava os britânicos de confundir sabão com civilização. Os próprios britânicos gostavam de dizer que "limpeza é quase santidade" -limpeza era um signo exterior de uma vida virtuosa.
Banhos, e especialmente banhos frios, eram um dos exemplos dos valores vitorianos e parte importante do regime de vida nas "public schools" em que se educava a futura classe dominante britânica. Os britânicos orgulhavam-se de seu asseio e gostavam de comparar-se aos franceses imundos -reclamando, por exemplo, do fedor de Paris, bem pior que o de Londres.
Os brasileiros e britânicos não estavam sós a este respeito. Em seu livro "O Embaraço da Riqueza" (1987), um estudo dos holandeses no século 17, Simon Schama afirma que a obsessão das donas-de-casa holandesas com a limpeza de seus lares e o brilho dos objetos de metal (que precisavam ser polidos todos os dias) não era, conforme se especulou, uma batalha contra a névoa e a humidade do clima holandês, mas sim um modo de distinguir-se das nações vizinhas -uma forma de distinção sublinhada por Pierre Bourdieu em seu estudo da burguesia francesa.
No que toca os norte-americanos, seus hábitos foram gentilmente satirizados pelo antropólogo Horace Miner, que em 1956 publicou (numa revista acadêmica, "The American Anthropologist") um artigo sobre a exótica tribo dos nacirema, seus "rituais bucais" e outros costumes estranhos.
Para um historiador como eu, é óbvio que, muito embora todos nos pretendamos limpos e higiênicos, as atitudes quanto ao que é considerado limpo ou sujo, puro ou poluído variam ao longo do tempo tanto quanto de um lugar ou grupo social para outro. Não é possível escrever uma história linear simples sobre o progresso da higiene, tal como não se pode fazê-lo com o progresso da civilização (como pensam os críticos de Norbert Elias).
Na Europa dos séculos 15 e 16, por exemplo, era na Itália e na Espanha que se tomava banho com mais frequência. Na Espanha, casas de banho públicas -a tradição do "hammam"- haviam sido introduzidas pelos conquistadores muçulmanos durante a Idade Média. Foi talvez por isso que os banhos foram destruídos durante a Reconquista; no século 16, os governantes espanhóis lançaram decretos proibindo os banhos, que interpretavam como um ritual religioso, um resquício do Islã num país oficialmente cristão -talvez tivessem razão. Assim, ao longo da Idade Moderna, os espanhóis passaram a tomar menos banhos do que na Idade Média.
Quanto aos italianos, parece que associavam limpeza com a idéia de "civiltà" que os tornou famosos por toda a Europa durante o Renascimento: uma cultura material que incluía desde garfos (como observei em meu último artigo) a pinturas de Rafael ou esculturas de Michelangelo. Como sabiam muito bem os humanistas da época, os banhos haviam tido grande importância na cultura daquela Roma antiga que tanto admiravam. Havia salas de banho (e não apenas banheiros portáteis) nos palácios renascentistas de Florença, Roma e Urbino, entre outros.
Até mesmo as prostitutas -ou especialmente as prostitutas- preocupavam-se em tomar banho e limpar os dentes, como sabemos a partir da vívida descrição que Aretino fez de seu modo de vida em Roma. Um visitante inglês à Itália (cuja narrativa foi publicada em 1617) julgou necessário chamar a atenção de seus leitores para a higiene italiana, em especial para o costume de lavar as mãos antes das refeições -o que incidentalmente nos diz algo sobre os hábitos ingleses de então.
Não é então de estranhar que um diplomata papal do século 16, enviado à Espanha, comentasse que homens e mulheres eram igualmente sujos e grosseiros à mesa; a seu ver, tanto pessoas quanto ruas deviam ser limpos. Já a partir do século 13, os conselhos municipais italianos começaram a contratar varredores de ruas e a promulgar regras sobre o lixo, de modo que suas cidades fossem verdadeiras obras de arte.
Tudo isso acabaria por mudar: depois do "revival" católico associado ao Concílio de Trento, as suspeitas da Igreja quanto ao corpo humano, em especial quanto ao corpo desnudo, levaram a uma reação contra essa tradição italiana, ou ao menos contra essa tradição aristocrática de banhar-se e lavar tudo, associando-a à vaidade e à volúpia -talvez com razão. A pureza religiosa era mais importante que a limpeza meramente física; e é assim que referências a banhos e banheiros desaparecem dos documentos.
Nos séculos 17 e 18, viajantes do norte da Europa, ainda que estonteados com as obras de arte, não deixaram de expressar seu sentimento de superioridade no que tocava a higiene. Quando foi à Itália em 1786, Goethe mais de uma vez comentou a sujeira das ruas. Em Veneza, diz ele, "enquanto caminhava, pegava-me imaginando leis sanitárias".

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