São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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O jogo democrático das ideologias

PAUL SINGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quis o acaso que o segundo turno das eleições municipais deste ano, nas três maiores metrópoles do país, contrapusesse pares de candidatos que representam filosofias ou éticas políticas distintas.
Em Belo Horizonte, disputam a prefeitura candidatos de esquerda e de centro; no Rio de Janeiro, candidatos de direita e de centro; e, em São Paulo, candidatos de direita e de esquerda. É razoável considerar que PFL e PPB são partidos de direita, PT e PSB de esquerda e PSDB de centro. A idéia aqui é mostrar que, além das questões locais e características pessoais dos candidatos, a escolha dos eleitores será também entre valores políticos e sociais. Pode ser considerado um avanço da democracia brasileira o fato das agremiações partidárias terem, em geral, adquirido um perfil ideológico relativamente nítido.
Comecemos pelos valores da direita, que hoje se identificam cada vez mais com o liberalismo clássico. Nesta visão de mundo, o importante é o indivíduo e sua liberdade de ir e vir, empreender e consumir. Estes valores costumavam ser resumidos no lema: "Laissez faire, laissez passer". Tudo o que constrange e limita a liberdade individual deve ser rejeitado. A fronteira da liberdade de cada indivíduo deve ser constituída pela liberdade dos demais. O único papel do Estado é traçar estas fronteiras e fazer com que sejam respeitadas. E a igualdade? A direita se inclina a crer que a responsabilidade básica pela desigualdade entre indivíduos é deles próprios. Numa sociedade livre, cada um goza dos mesmos direitos. Se alguns enriquecem e outros empobrecem, as razões devem ser procuradas nos fatores que diferenciam as pessoas. Se estatísticas mostram, por exemplo, que escolaridade e renda estão estreitamente correlacionadas, isso indicaria que as rendas maiores correspondem a produtividades maiores, proporcionadas pelo aprendizado escolar -portanto tudo justo: quem produz mais e melhor deve ganhar mais.
Liberais consequentes deveriam achar que o ensino privado é a melhor forma de alocar as oportunidades educacionais de acordo com as preferências individuais. Mas, em nosso país, a direita não é consistente a esse ponto, ao menos no discurso. Os seus candidatos afirmam apoiar o ensino público e gratuito para todos. Não obstante, pode não ser coincidência que a gestão de Paulo Maluf na prefeitura paulistana tenha gasto bem menos com educação fundamental do que a gestão precedente de Luiza Erundina.
Também em relação à assistência à saúde pode-se detectar a mesma ambiguidade. A doutrina liberal sustenta que a forma mais "justa", isto é, de acordo com a liberdade individual de escolha, é deixar os mecanismos de mercado alocar os recursos para qualquer finalidade, inclusive para saúde. Mas o discurso da direita reafirma que a saúde é um direito de todos, a ser atendido mediante a ação do Estado. O subconsciente privatista, no entanto, não deixa de aflorar. Em São Paulo, o prefeito Maluf inventou o PAS, entregando a assistência à saúde a "cooperativas", que devem administrá-la com espírito de empresa privada. O espantoso é que o PAS, uma privatização disfarçada, dá a cada uma das 13 cooperativas o monopólio da assistência municipal em determinada área da cidade. De acordo com os cânones liberais, o mercado que otimiza as escolhas individuais é o concorrencial.
Seja como for, os candidatos de direita tendem a priorizar o mercado e se opõem a que o Estado interfira em seu funcionamento. Por isso favorecem a privatização de empresas estatais, o enxugamento do quadro de servidores, a concessão de serviços públicos a firmas particulares. Eles tendem a negar a exclusão social ou a atribuí-la a fatores que nada têm a ver com o capitalismo, como o excessivo crescimento da população (em particular dos mais pobres) e a migração das regiões mais atrasadas às metrópoles. De acordo com a tese demográfica, a pobreza só será minorada quando os pobres forem convencidos a mudar de comportamento, ou seja, quando passarem a usar métodos anticoncepcionais e desistirem de querer melhorar de vida pela transferência às grandes cidades.
Finalmente, para a direita os privilégios que têm de ser combatidos são os que decorrem de transferências oriundas dos cofres públicos, desde as aposentadorias especiais de certas categorias profissionais até os "benefícios" que servidores públicos tendem a acumular ao longo de suas carreiras. Nos últimos anos, os governantes conservadores têm desencadeado verdadeiras campanhas pelas "reformas", que para eles constituem precisamente a eliminação de tais privilégios e a desregulamentação dos mercados. A abertura do mercado interno às importações e a irrestrita liberdade de movimentação dos capitais sobre as fronteiras nacionais são, para a direita liberal hodierna, os principais instrumentos de desenvolvimento econômico e social.
Para a esquerda, importa o indivíduo e a sociedade. Os indivíduos devem ter liberdade, mas não a ponto da desigualdade econômica e social ficar tão grande que uma minoria disponha de muito mais do que necessita, enquanto a maioria careça dos meios para satisfazer até necessidades fundamentais. Preservar a liberdade e diminuir a desigualdade são valores básicos para a esquerda. O combate à desigualdade se dá de muitas maneiras, mas requer inversões e gastos sociais do Estado, sobretudo em nível municipal. Oferecer aos destituídos ou ao conjunto da população serviços públicos de educação e saúde, transporte coletivo de qualidade com passagem subsidiada, habitação popular subsidiada, centros públicos de cultura, esporte e lazer etc. etc. são formas já consagradas de redistribuir renda. A proposta de esquerda é financiar tudo isso com impostos pagos pelos que ganham mais.
A esquerda aceita, hoje em dia, o mercado como necessário, mas não compartilha do entusiasmo pelo mesmo como único garantidor da liberdade individual. A esquerda acha que o capital é apropriado por uma minoria, a qual usufrui uma situação privilegiada na economia de mercado, enquanto a grande maioria está sujeita a trabalhar para esta minoria em troca de salário, quando tem a sorte de ser empregada. Uma parte dos trabalhadores, embora deseje e precise, não consegue emprego à taxa normal de salário. A pressão dos desempregados força os assalariados a se conformar com as condições de remuneração e de trabalho oferecidas pelos patrões. A esquerda acha injusto que parte dos trabalhadores fique desempregada e que os empregadores possam se aproveitar da competição entre os trabalhadores. A política da esquerda é promover o pleno emprego, seja pela redução da jornada legal e factual de trabalho, seja pela promoção de cooperativas, empresas autogeridas, redes de microempresas, reforma agrária etc., de modo a proporcionar oportunidades de trabalho a todos os desempregados.
Uma proposta redistributiva que a esquerda brasileira está implementando em nível municipal é a garantia de renda mínima. A modalidade mais comum da mesma consiste em dar a famílias que estão abaixo da linha de pobreza, com filhos em idade escolar, um suplemento de renda em troca da frequência assídua das crianças à escola. A proposta mais ambiciosa seria trocar o salário mínimo, o seguro-desemprego e outros programas assistenciais por uma renda mínima universal. Outra proposta, já em funcionamento em Porto Alegre e Brasília, é o "banco do povo", que recolhe poupanças e concede empréstimos a microprodutores, que não têm propriedades para garantir financiamentos concedidos pelos bancos comerciais. Uma terceira proposta é a redistribuição da terra agriculturável não utilizada convenientemente a trabalhadores que se disponham a cultivá-la.
A esquerda concorda com a direita que algumas empresas estatais possam ser melhor geridas pela iniciativa privada, mas se opõe que a mesma opere monopólios naturais (como as redes de água e esgoto, de energia elétrica, de telefonia) e empresas que dominam reservas estratégicas, como as de petróleo e outros minerais. Para a direita, as empresas devem, em princípio, ser privadas, porque as regras do mercado as compelem a ser eficientes, beneficiando os consumidores e os empresários inovadores. A empresa estatal carece destes incentivos e degenera inevitavelmente num ninho de privilégios. Para a esquerda, serviços que satisfazem necessidades básicas, cuja satisfação deve ser um direito de todos os cidadãos, como saúde e educação, não devem ser incentivados pelo desejo de ganho mercantil. A "mercantilização" de tais serviços é que os degenera, pois transformam os alunos e os pacientes de fins em meios.
A filosofia do centro é uma mistura dos valores da direita e da esquerda. Esta mistura nem sempre é consistente e quase nunca é equilibrada. Na época do populismo tradicional, o centro se inclinava mais a favor das propostas da esquerda. Atualmente a hegemonia neoliberal faz com que o centro se incline mais a favor dos valores e projetos da direita.
Não é de se esperar que todos os eleitores se orientem pela filosofia política das candidaturas para escolher em qual votar. Mas o próprio debate pré-eleitoral deixa que estas questões aflorem, amplificando a consciência política dos votantes. A democracia, para gerar seus frutos materiais e culturais, depende desta amplificação. Por isso ela só pode se consolidar sendo praticada. No Brasil, a introdução do segundo turno está contribuindo notavelmente para a educação política de todos nós.

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