São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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QUARTETO

ADRIANO SCHWARTZ
DA REDAÇÃO

É prova da força literária de todo escritor que ele seja permanentemente reinterpretado, reavaliado, reapresentado a novos públicos. Tanto mais forte ele se torna quanto mais potente for a voz daquele que dele trata. Por esse critério, o poeta Fernando Pessoa (junho de 1888/novembro de 1935) está chegando onde poucos chegaram -e com ele levando a língua por que optou, o português, já que passou boa parte da infância e toda a adolescência em um país de língua inglesa, a África do Sul.
O "Quarteto", texto escrito pelo francês George Steiner, um dos mais importantes críticos literários vivos, que o Mais! traz nesta edição (leia ao lado), é mais um exemplo do poder que cada vez mais adquire a poesia daquele que escreveu: "Todas as épocas me pertencem um momento/ todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim".
Com o artigo -mistura de apresentação de Pessoa aos leitores de língua inglesa e resenha de um livro há pouco lançado, "A Centenary Pessoa"-, Steiner une-se a uma nobre linhagem de críticos de várias nacionalidades que trataram -com maior ou menor pertinência- da obra do autor de "Mensagem", críticos como Octavio Paz, Roman Jakobson, Luciana Stegagno Picchio e Harold Bloom, para não falar de ensaístas brasileiros, como, por exemplo, Leyla Perrone-Moisés, ou portugueses, como o vencedor do último Prêmio Camões, Eduardo Lourenço (leia entrevista à pág. 5-8).
Com tal legitimação, é quase impossível entrar, hoje em dia, em qualquer grande livraria européia e não encontrar, em posição de destaque, algum livro de poemas ou textos de e sobre Pessoa.
E o mais interessante é que, mesmo em Portugal, obras novas continuam a ser publicadas. Há desde um guia turístico da capital portuguesa, "Lisboa: o Que o Turista Deve Ver", até a reunião da poesia inglesa -toda traduzida- e da "Correspondência Inédita de Fernando Pessoa" (todos da Livros Horizonte, de Lisboa).
Nesse sentido, é muito importante o trabalho da escritora e pesquisadora portuguesa Teresa Rita Lopes. Ela é autora de "Pessoa Por Conhecer" (Editorial Estampa), em que exemplos de dezenas de "personalidades literárias" do autor são apresentadas, analisadas e inter-relacionadas. É também a coordenadora de uma equipe que vem há vários anos decifrando, preparando e dando ordem a uma infindável série de poemas, artigos, anotações e cartas.
As biografias -desde a pioneira, "Vida e Obra de Fernando Pessoa" (Dom Quixote), escrita por João Gaspar Simões em 1950-, também se multiplicam. A última, "Etrange Étranger - Une Biographie de Fernando Pessoa (Ed. Bourgois), de Robert Bréchon, acaba de ser lançada na França.
Há até casos como o de H.D. Jennings, um inglês que, nascido em 1896, emigrou para Durban, na África do Sul, em 1928. Lá, já com mais de 60 anos, resolveu escrever a história da Durban High School, escola que Pessoa frequentou na adolescência. Fascinado com o antigo aluno do colégio e insatisfeito por ter acesso apenas às traduções inglesas e francesas, Jennings aprendeu português e acabou, então com mais de 80 anos, defendendo na Universidade do País de Gales a tese "Fernando Pessoa in South Africa", que serve de base ao livro "Os Dois Exílios - Fernando Pessoa na África do Sul" (Centro de Estudos Pessoanos).
Os ficcionistas também se valeram intensamente da complexidade pessoana. O caso mais espetacular de utilização do universo do autor em literatura parte de uma constatação simples. José Saramago percebeu que, ao morrer, em 1935, Pessoa só havia "matado" um de seus heterônimos, Alberto Caeiro. Outros dois, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, permaneciam "vivos". Saramago "optou" por Reis e perguntou-se: o que teria acontecido com ele? A partir daí, o escritor elaborou o romance "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (Companhia das Letras), em que não faltam nem saborosas conversas do heterônimo com o fantasma de seu criador.
O italiano Antonio Tabucchi é também um escritor fascinado por Pessoa. É autor de diversos ensaios sobre o poeta e de uma extensa obra ficcional, na qual se inclui "Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa" (Quetzal Editores), uma espécie de biografia imaginária dos momentos finais da vida de Pessoa, texto que foi, inclusive, adaptado para o teatro na Itália.
Em vez de buscar razões para explicar essa sedução exercida por Pessoa em tantos campos -e há muitas-, talvez seja melhor lembrar como o próprio poeta analisava a si mesmo. O trecho a seguir é extraído de uma anotação feita quando Pessoa tinha provavelmente pouco mais de 20 anos: "Encontro-me agora de plena posse das leis fundamentais da arte literária. Shakespeare não pode mais ensinar-me a ser sutil, nem Milton a ser completo. Meu intelecto atingiu uma flexibilidade e um alcance que me possibilitam assumir qualquer emoção que desejo e penetrar à vontade dentro de qualquer estado de espírito (...) Descobri que a leitura é uma espécie de sonho escravizador. Se devo sonhar, por que não sonhar meus próprios sonhos?".
Parece que o mundo está, a cada dia, descobrindo um pouco melhor um grande sonhador.
"É a hora."

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