São Paulo, domingo, 10 de novembro de 1996
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QUARTETO

GEORGE STEINER
ESPECIAL PARA "THE NEW YORKER"

É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes poetas em um dia. Foi precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de março de 1914.
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu naquela capital provinciana e algo lúgubre a 13 de junho de 1888. O Exército, o serviço público e a música figuravam no passado da família. Já em janeiro de 1894, após a morte do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a inventar "heterônimos" -"personas" imaginárias para povoar um "teatro íntimo do eu". O garoto de seis anos trocava cartas com um correspondente fictício. Sua mãe casou-se novamente, e a família mudou-se para Durban, África do Sul. No Natal veio à luz um certo Alexander Search, invenção para quem Pessoa criou uma biografia, traçou o horóscopo e em cujo nome calmamente translúcido escreveu poesia e prosa em língua inglesa. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca de um autor. De início, eles tendiam a escrever na esteira de Shelley e Keats, de Carlyle, Tennyson e Browning.
Em 1905, o jovem empresário de "eus" retornou a Lisboa. Logo abandonou a universidade e tornou-se autodidata. No restante de sua vida, Pessoa escolheu uma renda módica, em empregos de meio período. Serviu como correspondente de comércio estrangeiro, traduzindo e compondo cartas em inglês e francês. De vez e quando, traduzia uma antologia literária. Essa existência marginal e autônoma vincula Pessoa a outros mestres da modernidade urbana, como Joyce, Svevo (Trieste e Lisboa partilham uma vívida fantasmagoria) e, de certo modo, Kafka.
Até 1909, a poesia imputada a Alexander Search permanece em inglês, à exceção de seis sonetos portugueses. O ano de 1912 marcou uma reviravolta. Pessoa envolveu-se nos incontáveis círculos, conventículos e publicações efêmeras de cunho lítero-estético-político-moral que surgiram da crescente crise social portuguesa (77 mil habitantes emigraram só naquele ano). A vida íntima de Pessoa -a alternância entre o mundo dos cafés lisboetas e o isolamento radical- encontrou expressão num secreto "Livro do Desassossego" e no primeiro rascunho de um longo poema inglês. A fissão em incandescência quadripartida teve lugar naquele dia de março de 1914. Até hoje ele permanece um dos fenômenos mais notáveis da história da literatura. Ao rememorar o fato (numa carta de 1935), Pessoa fala de um "êxtase cuja natureza não conseguirei definir (...) aparecera em mim o meu mestre".

Alberto Caeiro escreveu 30 e tantos poemas a toque de caixa. A estes se seguiram, "imediatamente e totalmente", seis poemas de Fernando Pessoa ele só. Mas Caeiro não saltara à existência sozinho. Viera acompanhado de dois discípulos principais. Um era Ricardo Reis; o outro: "De repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a 'Ode Triunfal' de Álvaro de Campos -a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então, uma `coterie' inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa".
Pseudônimos, "noms de plume", anonimato e toda forma de máscara retórica são tão velhos quanto a literatura. Os motivos são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios de personalidade. O "companheiro secreto" (íntimo de Conrad), o "duplo" prestativo ou ameaçador, é um motivo recorrente -veja-se Dostoiévski, Robert Louis Stevenson e Borges. Assim também é o tema -antigo como a rapsódia homérica- da poesia "tomada sob ditado", sob o assalto literal e imediato das Musas, ou seja, das vozes divinas ou dos finados.
Nesse sentido de "inspiração", de "ser escrito em vez de escrever", as técnicas de escrita automática antecedem em muito o surrealismo. Muitos dos grandes escritores voltaram-se abertamente contra si próprios, contra sua obra ou seu estilo anteriores, a ponto de buscar sua destruição. A multiplicidade, o ego convertido em legião, pode ser festiva, como em Whitman, ou sombriamente auto-irônica, como em Kierkegaard.
Há disfarces e paródias que a erudição mais minuciosa jamais penetrou. Simenon era incapaz de recordar quantos romances criara ou sob quais antigos e múltiplos pseudônimos. Em idade avançada, o pintor De Chirico prorrompia em museus e galerias de arte declarando falsos os prestigiosos quadros que havia muito lhe eram atribuídos. Agiu assim porque passou a antipatizá-los ou porque não podia mais identificar sua própria mão? Como proclamou Rimbaud, em sua renovação da modernidade, "Eu é um outro".
Entretanto o caso de Pessoa permanece sui generis. Ele não tem nenhum paralelo próximo, não apenas por causa de sua estrutura quadripartida, mas também por diferenças marcantes entre suas quatro vozes. Cada uma tem sua própria biografia e físico detalhados. Caeiro é loiro, pálido e de olhos azuis; Reis é de um vago moreno mate; e "Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo", como nos diz Pessoa. Caeiro quase não dispôs de educação e vive de pequenos rendimentos.
Reis, educado num colégio de jesuítas, é um médico auto-exilado no Brasil desde 1919, por convicções monárquicas. Campos é engenheiro naval e latinista.
O inter-relacionamento dos três, seja na atitude ou no estilo literário, é de uma densidade e sutileza jamesianas, a exemplo de seus vários laços de parentesco com o próprio Pessoa. O Caeiro em Pessoa faz poesia por pura e inesperada inspiração. A obra de Ricardo Reis é fruto de uma deliberação abstrata, quase analítica. As afinidades com Campos são as mais nebulosas e intricadas. "É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afetividade" (1).
A língua de Campos é bastante parecida à de Pessoa; Caeiro escreve um português descuidado, por vezes com lapsos; Reis é um purista cujo linguajar Pessoa considera exagerado.
O labirinto é explorado na introdução de Octavio Paz a "A Centenary Pessoa" ("Um Pessoa Centenário", Carcanet, 25 libras), uma antologia com bela produção editada por Eugênio Lisboa e L. C. Taylor. Paz vê Caeiro, Reis e Campos como "os protagonistas de um romance que Pessoa jamais escreveu". Pessoa não é entretanto "um inventor de poetas-personagens, mas um criador de obras de poetas", argumenta Paz. "A diferença é crucial." As biografias imaginárias, as anedotas, o "realismo mágico" do contexto histórico-político-social em que cada máscara se desenvolve são um acompanhamento, uma elucidação para os textos. O enigma da autonomia de Reis e Campos é tal que, vez por outra, eles chegam a tratar Pessoa com ironia ou condescendência. Caeiro, por sua vez, é, como vimos, o mestre cuja brusca autoridade e salto para a vida generativa desencadeiam todo o projeto dramático. Paz distingue com acurácia estes fantasmas animados.
Caeiro é um agnóstico que deseja anular a morte por negar a consciência. Sua postura é de um paganismo existencial. Há em seus textos e sua "persona" retoques de quietude e sagacidade orientais. Sua fraqueza, sugere Paz, é a qualidade esfumada da experiência que alega encarnar. Ele morre jovem. Como Caeiro, Campos pratica versos livres e lida de modo irreverente com o português clássico ou castiço. Ambos são pessimistas, apaixonados pela realidade concreta. Mas Caeiro é um ingênuo que cultiva a abstinência e o retraimento filosóficos, ao passo que Campos é um dândi peregrino.
Ricardo Reis é o mais complexo destes disfarces. Anacoreta, ele privilegia os gêneros neoclássicos altamente elaborados, como o epigrama, a elegia e a ode. Raríssima mescla de esteta estóico (um eco talvez de Walter Pater?), a perfeição técnica de seus poemas curtos busca a tranquila resignação ao destino. Pessoa chama atenção para as obras não publicadas de Reis; elas incluem "Um Debate Estético entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos" e notas críticas sobre Caeiro e Campos, qualificadas por Pessoa como "modelos de precisão verbal e equívoco estético". (Tão encantadoramente tortuosos são o dédalo e o quarto de espelhos de Pessoa que mesmo um Borges ou um Paz, ambos mestres em labirintos, parecem simples em comparação). E a respeito do titereiro ele próprio (apesar dessa comparação grosseira)?
Paz o imagina como essencialmente ausente: "Ele nunca aparecerá: não há um outro. O que aparece insinua a si próprio sua alteridade, que não tem nome, que não é dito e nossas pobres palavras invocam. Isto é poesia? Não: poesia é o que resta e nos consola, a consciência das ausências. E, mais uma vez, quase imperceptivelmente, um rumor de algo. Pessoa ou a iminência do desconhecido".
A silhueta que Paz traça de Pessoa, sendo palavras de despedida tão sutis, correm o risco de obscurecer um fato básico. Do jogo espectral dos heterônimos emerge uma poesia com força de primeira grandeza. Pessoa é com justiça arrolado entre as 26 figuras centrais do sugestivo, embora um tanto pueril, "Cânone Ocidental" (de Harold Bloom).
O português é uma língua resistente. Suas guturais o fazem como que o membro eslavo da família das línguas românicas. Na ausência, ademais, de uma tradução adequada para o inglês dos "Lusíadas", de Camões, essa grande epopéia de um império trágico e conquistador, para a maioria de nós a literatura portuguesa (que inclui, naturalmente, a do Brasil) permanece estranha.
Somos por isso tanto mais gratos às traduções e seleções de nosso quarteto a cargo de Keith Bosley. Primeiro, a voz de Pessoa: "Não sei quem me sonho..."; "Ditosos a quem acena/ Um lenço de despedida!"; "Dá a surpresa de ser". Ou o característico "O mais do que isto/ É Jesus Cristo,/ Que não sabia nada de finanças/ Nem consta que tivesse biblioteca...". Há este registro irônico e incerto, com seu constante apelo ao mar, a um Portugal quase liberto de suas amarras européias:
"Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães
/choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do
/Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo
/deu,
Mas nelle é que espelhou o céu".
Ouvimos a seguir a sensualidade filosófica de Caeiro:
"Não me importo com as rimas.
/Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao
/lado da outra.
Penso e escrevo como as flores
/têm cor
Mas com menos perfeição no
/meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade
/divina
Há laconismos inesquecíveis (uma distante melodia de Emily Dickinson): "Li hoje quase duas páginas/ Do livro dum poeta místico,/ E ri como quem tem chorado muito". Caeiro saúda o transitório. Para ele a "recordação é uma traição à Natureza", já que ela muda constantemente. Ele ordena aos pássaros em vôo que lhe ensinem a arte de passar sem deixar rastro. A busca da individualidade, de verdades absolutas -o modelo platônico tão peremptório na poesia ocidental- é meramente "uma doença das nossas idéias". As reflexões de Caeiro sobre a morte e a posteridade são dotadas de um orgulho agridoce, pois ele foi "gentio como o sol e a água" e, por fim, veio-lhe o "sono como a qualquer criança".
Absolutamente diverso é Ricardo Reis: rato de biblioteca, entendido em mitologia antiga, perito em formas métricas elaboradas e estilo mandarim. De certo modo, uma versão mais austera de Swinburne e Gautier, de ouvidos atentos e imitando "O ritmo antigo que há em pés descalços,/ Esse ritmo das ninfas repetido". Um esteta "fin de siècle" que prefere "rosas à pátria" e vê em Cristo não "mais que um deus a mais no eterno". Todavia um poeta lírico capaz desta rara mordacidade epigramática que conhecemos também de Walter Savage Landor (talvez o verdadeiro modelo de Reis):
"Quando, Lídia, vier o nosso
/outono
Com o inverno que há nele,
/reservemos
Um pensamento, não para a
/futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem
/somos mortos,
Senão para o que fica do que
/passa -
O amarelo atual que as folhas
/vivem
E as torna diferentes".
Campos é o retórico loquaz, o bardo à maneira clássica. É capaz porém de ridicularizar-se com ousada satisfação. Sua "Ode Triunfal" pode ser equiparada a "A Ponte", de Hart Crane, como um dos textos-chave das paisagens industriais da modernidade. "Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hó la foule!" Como o ranzinza e fantasmagórico Pessoa deve ter refugido da robusta democracia de Campos! Como Reis, o alusivo helenista vitoriano, deve ter-se esquivado!
"Ah, e a gente ordinária e suja,
/que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como
/palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas
/das mercearias
E cujas filhas aos oito anos -e eu
/acho isto belo e amo-o!-
Masturbam homens de aspecto
/decente nos vãos da escada."
"Tabacaria" consta entre os mais prestigiados poemas da língua. (Pessoa era um fumante inveterado.) Não é cinismo, mas antes uma espécie de revigorante desalento que ordena à pequena garota "comer chocolates", pois "que não há mais metafísica no mundo senão chocolates", após o que o poeta deita o papel laminado "para o chão, como tenho deitado a vida". E já que "toda gente sabe como as grandes constipações/ Alteram todo o sistema do universo/ Zangam-nos contra a vida,/ E fazem espirrar até à metafísica", o poeta receita um único remédio: "Preciso de verdade e da aspirina". Hazlitt fala com reverência de uma sensibilidade capaz de imaginar e dar articulação a um Iago e a uma Cordélia. A simples amplitude de vozes e temperamentos alternados de Pessoa, as esquivanças de si próprio, dificilmente é menos admirável.
Essa homenagem centenária elegantemente ilustrada oferece passagens representativas da prosa de Pessoa acrescidas de críticas, perfis e documentos. Omitido porém foi o leviatânico drama filosófico "Fausto". Pessoa começou a trabalhar nesta suma em 1908 e -em analogia a Goethe- continuou a elaborá-lo até 1933. Há críticos, notadamente na França, que o tomam por uma obra-chave, um arquipélago ainda a ser descoberto.
Os editores incluíram duas imaginárias entrevistas póstumas, mas o supra-sumo nessa veia parece que lhes passou despercebido: "O Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago, traduzido para o inglês em 1991 por Giovanni Pontiero, está entre os melhores romances da recente literatura européia. O livro fala do regresso de Ricardo Reis de seu exílio no Brasil, de Eros e fascismo em Lisboa e do encontro entre Reis e seu genitor morto. Nada mais perceptivo foi escrito sobre Pessoa e suas sombras contrastantes. Nas palavras de Fernando Pessoa:
"Se as coisas são estilhaços
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso".
Eles foram e não foram.

Tradução de José Marcos Macedo.

NOTA DA REDAÇÃO
1. Steiner confunde, nesse trecho, Álvaro de Campos com Bernardo Soares, este sim o semi-heterônimo a quem a frase se refere.

LEIA sobre o novo livro de George Steiner à pág. 5-10

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