São Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Pneumotórax

JOÃO SAYAD

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos A vida inteira que poderia ter sido e não foi
Tosse, tosse, tosse
Mandou chamar o médico?
- Diga trinta e três.
- Trinta e três, trinta e três, trinta e três
- Respire
...............................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então doutor, não é possível tentar um pneumotórax?
- Não, a única coisa a fazer é tocar um tango argentino
Manuel Bandeira

A linguagem científica é cheia de armadilhas, ilusões e mentiras. Cientistas precisam inventar palavras para diferenciar as novas descobertas da crença habitual ou do saber comum que pretendem renovar.
Por que Newton batizou sua descoberta de lei da gravidade? Gravidade vem do latim "gravitas" e quer dizer muito sério, importante. Uma lei muito importante, gravíssima: os corpos são atraídos para o centro da terra na razão direta do produto das massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância. Deveria ser dita com voz grave, profunda e séria.
Cientistas que tratam de gente, como médicos e economistas, usam linguagem especial com o mesmo objetivo. Mas, neste caso, a linguagem científica presta outro serviço. Suaviza a crueldade do anúncio do diagnóstico e da terapia recomendada. O médico do Manuel Bandeira falou como gente e não como médico: a única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
A linguagem científica presta muitos outros serviços úteis e nocivos. Transforma conhecimentos triviais em descobertas ou invenções, protege a proposição científica de fatos que a contrariem.
E finalmente, o que é muito importante em economia, a linguagem científica ilude.
O déficit comercial só será resolvido quando resolvermos o déficit público. Como traduzir para a linguagem comum e entender a afirmação científica: por que será que a demissão dos funcionários públicos ou o fechamento de estatais ou o não pagamento das despesas de custeio da saúde ou da educação vão aumentar as exportações e diminuir as importações?
Será que os funcionários públicos consomem mais produtos importados do que a média da população? Ou será que funcionários públicos demitidos poderão plantar café para exportar?
Talvez o controle do déficit público possa ajudar no controle do balanço comercial se os funcionários públicos demitidos deixarem de comprar arroz, feijão e óleo de soja, que poderá ser exportado.
Ou, então, desempregados passem a aceitar salários menores, que acabarão por reduzir os salários nominais dos operários da indústria até que a exportação se torne rentável, apesar de o câmbio continuar fixo.
É uma lei de extrema gravidade -a redução do déficit público reduz a demanda, o emprego e os salários nominais, o que permite exportar mais e importar menos. Agora, podemos entender a relação entre as duas coisas.
A proposta embrulhada em linguagem científica acaba sendo tão poderosa que acaba iludindo o bom senso e a capacidade de pensar: cortamos investimentos em estradas e portos que poderiam ajudar muito as exportações brasileiras.
Talvez não possamos explicar com linguagem comum a proposição de que o controle do déficit público reduz o déficit do balanço comercial porque ela não é politicamente aceitável.
Afinal de contas, se importamos mais do que exportamos, estamos vivendo além das nossas possibilidades.
Precisamos cortar alguma coisa. Mas faz sentido cortar os gastos prioritários em saúde, educação, justiça e segurança? Será que um chefe de família que perdeu emprego começaria a economia tirando os filhos da escola, deixando de pagar o seguro-saúde ou, alternativamente, cortando as despesas com restaurantes e férias e adiando a compra de um videocassete?
Tudo isto seria verdade se estivéssemos em pleno emprego. Não seria mais fácil arranjar um emprego para o chefe de família? Esta crítica não vale, pois o enunciado da lei exclui esta possibilidade -o déficit público causa déficit comercial sob a hipótese de pleno emprego.
Na semana passada, Pérsio Arida afirmou, em entrevista, que para garantir a estabilidade é necessário controlar o nível de atividade, até que mais tarde consigamos fazer o governo gastar menos.
Mas para que serve a estabilidade a não ser para permitir o crescimento da produção, do consumo e do emprego? Quantos anos mais de crescimento lento e desemprego serão necessários para comprar a estabilidade?
Não é fácil responder, mas é a questão mais grave da recomendação de Arida. Quanto tempo mais -um ano, mais dois anos, três, cinco? Os mais jovens podem entusiasmar-se com esta dolorosa construção do futuro. Aos mais velhos, sobra uma vida inteira que poderia ter sido e não foi e a possibilidade de cantar um tango argentino.

Texto Anterior: Viva a diferença - 1; Viva a diferença - 2; Almoço de negócios; Promoção premiada; Prevendo inadimplência; Aos pedaços; Olho no computador; Cadeira vaga; Trabalho incentivado; Superando a meta; Plano de expansão; Alta costura; Cuidando dos inimigos; A seu dispor; Nova onda; Bacalhau natalino; Marcando passo
Próximo Texto: Há salvação para o empresário nacional?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.