São Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Indústria produz lixo com requinte técnico

JÚLIO MEDAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Imagine um tresloucado empresário americano produzindo um show de música brasileira no Carneggie Hall e convidando os seguintes artistas: Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Altamiro Carrilho, Armandinho do Bandolim, Macalé, Sivuca, Arrigo Barnabé, Grupo Uakti, bateria de Padre Miguel, Amilson Godoy e orquestra, Oswaldinho do Acordeom, Borghetinho, César Mariano, Banda de Pífanos de Caruaru, os violonistas Ulisses Rocha, André Jeraissati, Heraldo Dumonte, Paulinho Nogueira, Hélio Delmiro, Paulo Belinatti, irmãos Assad, e alguns rouxinóis, como Gal Costa, Elza Soares e Gilberto Gil.
Não tenho dúvidas de que a imprensa especializada americana iria dedicar páginas e páginas ao evento, e concluir que o Brasil possui a mais rica e criativa música popular do planeta.
Vamos supor que essa avalanche de reportagens entusiásticas provocasse uma enorme onda turística ao Brasil.
Os visitantes aqui chegariam e, ávidos, sairiam à procura desses gênios musicais. Ligariam imediatamente o rádio e a TV, tentariam comprar discos.
E aí viria a surpresa: ouviriam a pior música do mundo, em nada lembrando aquele show.
Seriam duplas injustamente chamadas de "sertanejas", cantando um bolerão lacrimejante; grupos fazendo um samba primário e grotesco, já devidamente carimbado de "sambanejo"; topariam com o mais medíocre roquinho internacional e seus subprodutos tupiniquins, e assim por diante.
O que é que houve com a música popular brasileira, como dizia Rita Lee?
A grande verdade é que, entre a biodiversidade musical mais rica do planeta e o consumidor, instalou-se uma incompetente indústria cultural.
Incapazes de operar com nossas riquíssimas matérias-primas, optaram por empacotar com grande requinte técnico um lixo que eles mesmos inventaram e acham que é disso que o povo gosta.
Villa-Lobos, num momento de rara lucidez, nos anos 30, interrompeu praticamente sua carreira internacional para lutar junto a Getúlio Vargas pelo ensino musical nas escolas.
Na época, dizia ele, com outras palavras evidentemente: "Se o brasileiro não for alfabetizado musicalmente, ficará à mercê de uma poderosa indústria da comunicação que, em sua fúria mercadológica e lucrativa, dificilmente estará preocupada com a qualidade cultural do produto que vai veicular".
Santas palavras! Maldita previsão!
Hoje a indústria cultural do Brasil produz uma "coisa" que só serve para mantê-la viva, Frankensteins que nada têm a ver com a sensível e inteligente musicalidade nacional.
E já que esse produto bem empacotado nada mais é do que um objeto artificial e industrial como qualquer outro -o automóvel, por exemplo-, por que os empresários tanto se assustam quando se ameaça aplicar sobre eles as mesmas regras dos outros segmentos comerciais?
O ministro Weffort pode se considerar um vitorioso. Foi só ele lançar algumas idéias que longinquamente poderiam questionar esse status quo que esses fabricantes de Tiriricas se alvoroçaram todos.
Conseguiu, inclusive, que a imprensa abrisse espaço para esse debate, mesmo tendo ela própria abandonado essa polêmica de há muito, deixando correr solta a imbecilização de nossa cultura popular.
É evidente que não é função do Estado imiscuir-se na produção cultural. Ele tem atribuições mais específicas e urgentes como saúde, educação etc.
Mas, quando uma máquina de produção de bens de consumo culturais adquire poderes ditatoriais sobre a mente da coletividade, é evidente que se torna obrigação do poder constituído atuar nessas distorções -criando regulamentações e incentivos fiscais.
Que isso ocorra o mais breve possível, antes que nosso povo se torne um rebanho de débeis mentais.

Texto Anterior: Projeto é equívoco cultural e econômico
Próximo Texto: Conheça os Principais Pontos do Projeto
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.