São Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 1996
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"Anjos" de Salles exibe fascínio pelas câmeras

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Como Nascem os Anjos", filme de Murilo Salles que estreou na última sexta-feira em São Paulo, vai ao cerne do fascínio que a televisão exerce sobre os telespectadores. E por isso é instigante.
A televisão não é o assunto principal do filme. Mas no roteiro de Murilo Salles, Jorge Duran, Aguinaldo Silva e Nelson Nadotti, o veículo acaba aparecendo com toda a complexidade que sua atuação envolve. A história bem construída, com diálogos precisos e sugestivos, explora o tema a partir de diferentes perspectivas.
Como no caso mais recente de revolta na Casa de Detenção, em que os presos exigiam a presença das câmeras de TV para cobrir sua transferência para o presídio de Araraquara, no filme a reportagem televisiva é solicitada como garantia de que as autoridades policiais cumpririam o acordo firmado com os meninos infratores.
Em uma sociedade em que a legitimidade dos poderes públicos e dos políticos vem sendo indistintamente corroída, o meio que permite a circulação de informações e imagens de maneira mais imediata e ampla se transforma no fiador da justiça. A visibilidade perante a opinião pública se torna garantia de vida a quem não possui outros recursos de influência.
Mas o filme não pára aí. Uma sequência curiosa mostra os garotos favelados no exercício de seu poder de telespectadores bem treinados. Forçam a americana prisioneira a exibir os seios desnudos e, como que para marcar a normalidade da situação, assistem ao espetáculo como se estivessem assistindo à televisão. Decepcionados com a falta de glamour da performance ao vivo de uma gringa amedrontada e aviltada, preferem desligar o aparelho.
Como pudemos confirmar na entrevista com os atores mirins do filme publicada na sexta-feira pela Folha, ser artista se constitui em uma perspectiva profissional que excita e move ações. E a possibilidade de aparecer na televisão instiga esse desejo de forma contundente.
Em uma das cenas mais bonitas do filme, estimulado pelas luzes e câmeras, Japa (o menino Sílvio Guindane) dança encapuzado um funk maravilhoso na varanda da mansão ocupada. Para seu delírio, a performance vai ao ar no jornal da noite em cadeia nacional.
Seja como testemunha ocular, como portadora de uma magia glamourosa, ou como via de celebridade ainda que fugaz, a televisão se constitui em articulador poderoso da vida pública. É um referencial que dá sentido à vida. Resta perguntar quais são as bases de legitimidade desse novo poder.

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