São Paulo, sábado, 16 de novembro de 1996
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O século 21 será o do bocejo global

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Em 1896, Adolph S. Ochs comprou em Nova York o prestigioso mas frágil "Times" e fundou "The New York Times", que é hoje o jornal mais importante do mundo americano, no qual vivemos. Que outro diário poderia concorrer com esse Moby Dick cuja edição dominical me custa, aqui no Rio, R$ 15?
Quando Ochs iniciou sua aventura jornalística, há um século, certamente pensava no "The Times" de Londres, pois Britânia ainda "governava as ondas do mar", como cantava o hino. E da Europa continental podia ainda sair o país senhor das terras do mundo.
Esse senhor poderia ser a França, como esperava quem lia em Paris os editoriais patrióticos de "Le Figaro", fundado em 1826, ou a Alemanha, para quem lia o "Frankfurter Zeitung", que era de 1856.
Ochs fundou o "Times" quando imperava na imprensa americana aquele divertido demônio, Randolph Hearst, que acabou imortalizado por Orson Welles.
Uma das coisas mais deliciosas que Hearst disse sobre jornais foi: "Notícia é aquilo que alguém quer impedir você de publicar: o resto não passa de anúncio".
Ochs apelou, ao contrário, para a seriedade e adotou como lema do jornal os ditos: "Todas as notícias que merecem ser impressas" e "este jornal não manchará a toalha do seu café". Ochs acabou ganhando. Hearst era Oscar Wilde demais para fazer jornais que durassem cem anos.
Mas estou fugindo do meu assunto. O que eu queria sublinhar, ao começar a escrever, é que Ochs, ao fundar o "The New York Times" em 1896, fez uma descoberta, esta sim importante: a de que livro também era notícia.
Isso o levou a fundar, com o novo jornal, o "Book Review". Literatura, filosofia, cultura geral eram também "news". Jornal e livro podiam e deviam crescer juntos.
A comemoração desta descoberta, que no Brasil até hoje só é timidamente aceita, foi a publicação, feita agora, do "Book Review" do centenário, com 120 páginas. Ela relembra e reproduz críticas que vão da que foi feita a "Lord Jim", de Conrad, no ano de 1900, ao "Omeros", de Derek Walcott, em 1990.
Esse número atlético do "Book Review" me deixou perplexo. Tem-se a impressão de que, quase sem tomar fôlego, o século que está acabando produziu uma literatura que dificilmente chegará a tais alturas no século próximo.
Em termos estéticos, de criação artística, a famosa globalização, acho eu, vai resultar num bocejo gigantesco.
No século que está terminando, as duas guerras mundiais, seguidas da Guerra Fria e do pavor em que vivemos da guerra nuclear que podia acabar com o mundo, refletiram-se no que foi pensado e escrito.
Acalmados, agora, os terrores maiores, temo que se caia na morna barbaridade que não inspira nada, a barbaridade de um mundo cada vez mais povoado, de um lado por gente paupérrima, e portanto incapaz de cuidar de si mesma, e por outro lado por gente sem medos maiores, sem religião e que não quer nem pensar no cansativo problema de dar de comer a quem tem fome.
Vamos folhear o "Book Review" e vocês verão que belas angústias nos atormentaram. Um bom balizamento dessas angústias nos é dado pela Rússia, representada na revista pelo artigo publicado em 1912 sobre "Os Irmãos Karamazov" e de novo presente num artigo, de 1991, sobre o livro "Reconstruindo a Rússia", de Alexandre Soljenitzin.
Como o leitor já viu, vamos de Rússia a Rússia: a União Soviética foi uma das obras de ficção que deslumbraram o século, mas não permaneceram no cânone.
Aliás, bastaria o confronto entre Dostoievski e Soljenitzin para traçarmos com clareza a diferença entre o século tormentoso que se fecha agora e o internético estupor que se anuncia.
O artigo do "Book Review" sobre "Os Irmãos Karamazov" é do ano de 1912, e o crítico, sem deixar de admirar o som e a fúria do livro, se irrita com seus excessos.
Não é sequer mencionada a presença do próprio Cristo diante do Inquisidor, enquanto o crítico se impacienta com os crimes, castigos e remorsos tratados de forma tão pouco "ocidental" nesse romance que só podia ser comparado aos poucos verdadeiramente fundamentais da literatura do mundo.
Quanto à crítica de "Reconstruindo a Rússia", ela é assinada por Daniel Patrick Moynihan, um político e intelectual cético e muito inteligente.
Moynihan acha simpáticas mas pouco práticas as idéias desse Soljenitzin, que, ao contrário do que se esperavam, voltou à Rússia, mas lá pouco conseguiu fazer até agora. Anda muito sumidinho. Ser profeta em sua própria terra é profissão para pouca gente, poucos Dostoievskis.
Mas não encalhemos na Rússia. A lista das críticas do "Book Review" é faiscante como uma vitrine de joalheria.
Em 1922, comenta-se o "Ulysses", de James Joyce. Em 1920, "Introdução à Psicanálise", de Freud. Em 1925, "Mrs. Dalloway", de Virginia Woolf, e "Do lado de Guermantes", de Proust.
Em 1927, "Poemas", de Ezra Pound, e "A Montanha Mágica", de Thomas Mann. Em 1932, comenta-se um livro sarcástico sobre o futuro remoto, "Admirável Mundo Novo", de Huxley. E, em 1933, um livro sinistro sobre o futuro imediato, "Minha Luta", de Adolf Hitler.
Em 1937, um grande livro de angústia e expiação, "O Julgamento", de Franz Kafka. Em 1943, um de poesia e consolação, "Quatro Quartetos", de T.S. Eliot. Muitos e muitos haveria ainda a citar, livros de Auden, Primo Levi, Faulkner. Fecho a lista citando Gabriel García Márquez, em crítica de 1970, que põe a América Latina no "Book Review".
Só encontrei, numa página de publicidade em que a editora Harper Collins saúda o centenário do "Book Review", a lista, em tipo graúdo, do nome dos autores da casa. Um desses nomes me pareceu familiar, ainda que escrito de forma um tanto insólita: Paulo Coehlo. Assim mesmo, Coehlo.
Bem, para resumir: até o papa Wojtyla, no final deste nosso frenético século 20, fez as pazes com Darwin e o evolucionismo. Ainda deixou um cantinho para a alma, mas tão desconfortável que mais parece quarto de empregada em apartamento de família brasileira.
Eu diria que o século 21 será sem mistérios ou refrigérios. Um saco, em suma.

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