São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A prosa prolixa de um minimalista

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Wasabi" é um livro estranho, por mais de uma razão. E, por ser o primeiro texto do argentino Alan Pauls, 37, publicado no Brasil, fica difícil saber se o que há de mais estranho nele, pelo menos quanto ao estilo, é proposital, efeito da ironia, ou simplesmente o que parece ser.
A princípio, mas só a princípio, o texto de Pauls poderia lembrar uma certa tendência da literatura francesa contemporânea, sobretudo pela descrição dos detalhes, colocados no centro, tratados como se tivessem grande importância narrativa; pelo foco estreito sobre situações e objetos parciais, uma atomização do mundo, pela dramatização dos detalhes numa espécie de prosa minimalista. É uma tendência que, a partir do "nouveau roman", mais seco e cerebral, acabou desembocando numa nova geração, por vezes mais bem-humorada.
O próprio universo de que trata o livro de Pauls atesta essa proximidade: um jovem romancista argentino é convidado, assim como havia sido o próprio autor, para uma estada na residência de escritores de Saint-Nazaire à época do lançamento de seu romance na França. Depois de ver um pequeno quisto em suas costas se transformar em verdadeira deformação, uma espécie de corcunda pontuda, entre outras tantas desventuras, o jovem escritor termina obcecado pela figura do francês Pierre Klossowski -autor de "Roberte ce Soir", "Le Baphomet" etc.- e decide assassiná-lo.
Essa seria a primeira estranheza do texto, seu conteúdo de humor, uma estranheza afirmativa do escritor, positiva, o esforço de criar um universo ao mesmo tempo cômico e de mal-estar, a parte mais bem-sucedida do livro. Mas é numa outra estranheza, de estilo, que começam a surgir os problemas e as dúvidas sobre que tipo de piada é essa -e se é realmente uma piada.
Klossowski parece ser uma referência evidente de Pauls. Assim como o escritor francês, admirador de Sade e admirado por Michel Foucault e Gilles Deleuze, o autor argentino professa uma literatura "filosófica", nem que, no seu caso, seja somente pela insistência com que suas frases tentam "pensar" cada detalhe do que descreve. Mas a estranha combinação entre a vontade de uma literatura "filosófica", à moda de Sade, prolixa por natureza, e a preocupação minimalista com os detalhes termina por resultar num estilo híbrido cuja principal característica, a menos que seja por ironia ou paródia, é uma sucessão obsessiva de circunlocuções cujos volteios são proporcionais aos clichês que proferem.
Pauls escreve como um minimalista prolixo, se é que isso é possível. Sua prosa avança pelos detalhes, mas repleta de comparações, de adjetivos e advérbios, e de construções que têm algo de um discurso de bacharéis. São as metáforas e as imagens mais empoladas para descrever as coisas mais simples -e em geral não dizer nada.
Por exemplo, e ao acaso: "Os olhos da farmacêutica (...) viajavam da intriga à suspeita com uma única e rápida escala no desconcerto" ou "indefesos, delegamos na sucessão fatal do tempo, que é idêntica para todos, o avanço de uma corrupção que aplaca toda resistência e só afeta a nós, recortando-se contra o fundo do tempo como uma silhueta à contraluz sobre uma tela vazia" ou "dois dedos nefastos folhearam o livro intolerável dos minutos" ou "a impaciência, esse veneno que a oportunidade inocula em uma única mordida casual, acendia o meu amor por Tellas com uma intensidade que nunca tinha sentido antes" ou "eu dava voltas, tonto de ciúmes, nesse outro tempo onde transcorrem as fraudes e o engano crava os seus dentes fatídicos" ou "minha imaginação (porque é assim que trabalha o monstro da dúvida) tornou-se tão permeável quanto uma camada de areia" ou "os traços do seu rosto consumido tramavam uma conspiração de castigos", e assim "ad nauseam".
Na contracapa, um grande escritor argentino, Ricardo Piglia, dá o seu aval: "O surgimento de Alan Pauls é a melhor coisa que poderia ter acontecido à literatura argentina desde a estréia de Manuel Puig". Ao lado do extraordinário Juan José Saer, lamentavelmente nunca traduzido no Brasil, Piglia é, este sim, uma das melhores coisas que poderia ter acontecido à literatura argentina nas últimas décadas. Assim sendo, dando-lhe um voto de confiança por seus livros e diante de seu elogio a Alan Pauls, só resta esperar que todos os exemplos acima citados sejam apenas obra da mais deslavada ironia e que este resenhista não tenha compreendido bulhufas dessa obra-prima.

Texto Anterior: Capítulo trata da sexualidade
Próximo Texto: A literatura segundo Sérgio Buarque
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.