São Paulo, quarta-feira, 20 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

As eleições em São Paulo e a questão racial

HELIO SANTOS

Muitas pessoas, leitores e mesmo articulistas da Folha, como Clóvis Rossi, entendem que a temática racial não deveria ter sido trazida a debate nas últimas eleições. A meu ver, contudo, alguns fatos ocorridos no segundo turno exigem análise desapaixonada.
Primeiro foi seu uso oportunista pelo marketing da candidata petista, que decidiu "homenagear" os negros mediante a introdução de uma apresentadora negra em seu programa de TV. Depois, Pitta assegurou nomear "pelo menos" um secretário negro. Em seguida, foi a vez de setores do movimento negro virem a público apoiar a candidatura petista. Como uma espécie de praga malufista, veio a seguir a manifestação preconceituosa da candidata petista contra o candidato do PPB.
É de estranhar a pequena repercussão que teve tão grave fato na imprensa, bem como no interior do movimento social negro moderno e não-partidarizado. No centro de tudo está também o voto negro, que sempre foi menosprezado pelos analistas políticos de plantão. O que ocorreu com Celso Pitta agora já tinha acontecido com Benedita da Silva em 1992 no Rio de Janeiro.
O que se dá é que, se são oferecidas ao negro condições efetivas de competitividade -isso em qualquer campo-, ele comprova sua força e seu valor. Pitta teve em São Paulo aquilo que o movimento negro contemporâneo tem como máxima: igualdade de oportunidades. O candidato eleito pôde, com o apoio de dois partidos fortes, obter visibilidade. Teve ainda o efetivo apoio de uma gestão que a população da cidade aprova. Enfim, não veio como um candidato nanico, como na maioria das vezes acontece com as candidaturas negras a postos majoritários.
No Rio, armaram os arrastões de desordeiros contra a evangélica Benedita. Aqui, insiste-se que o pós-graduado no exterior, com ampla experiência profissional, testado em diversas situações, é um "ventríloquo" sem luz própria.
O pior cego, já se disse, é o que não quer ver. Nem todos os negros necessitam professar um credo ideológico parecido. Quando nos querem iguais é porque, de pronto, negam nossa humanidade. Iguais são as baratas, os seixos dos rios e as tanajuras. Os brancos brasileiros não são iguais em muitas coisas e, no entanto, estão, em sua maioria, devidamente incluídos.
A situação do negro no Brasil é atípica. Não nos esqueçamos daquilo que o cotidiano revela e que as pesquisas comprovam: aqui "não" há racismo, isto é, lutamos contra um adversário muitas vezes -mas nem sempre- oculto, que se revela toda vez que há conflito de interesses com poder em jogo, como agora, com Erundina e Pitta.
Por isso, não adianta o movimento negro insistir em pregar pregos com serrotes e serrar madeira com martelos. A sabedoria sugere para a nossa específica luta, além da criatividade, a utilização de ferramentas adequadas em cada circunstância. Portanto, é lamentável o fato de que nem todo o movimento negro tenha percebido que o nosso discurso e militância contribuíram para a eleição de Pitta; e, nesse caso, não há que considerar a classificação ideológica do grupo vitorioso. Tem um componente esquizofrênico o fato de nem todos aceitarem que a nossa luta vem demovendo conceitos e opiniões a nosso respeito.
Como fundador e militante do PSDB, abracei com entusiasmo a candidatura de José Serra. Esgotado o primeiro turno, o meu partido impediu o apoio explícito à candidatura do PPB. Apesar disso, em nenhum momento fui instado a criticar Celso Pitta enquanto negro. Nosso trabalho partidário no primeiro turno se restringiu a potencializar nossa proposta de governo.
A minha independência no que diz respeito à questão racial me impediria de atuar de outra forma. Em virtude de realizar atualmente, em nível federal, um trabalho interministerial no qual coordeno políticas e ações que buscam valorizar a população negra, pude verificar de perto que há políticos classificados como de esquerda e direita que têm, igualmente, posições fortemente contrárias às políticas compensatórias que buscam viabilizar a cidadania plena dos negros. São setores que ainda não conseguiram enxergar o óbvio: não existe democracia efetiva onde não há igualdade de oportunidades.
Tais setores alegam sempre um ideal universalista anacrônico e inadequado para a realidade de exclusão em que nos encontramos. É um acinte ao bom senso procurar tratar de maneira igual pessoas incluídas e excluídas.
Essa "sintonia" entre esquerda e direita -tanto quando apóia como quando não- é verificada no Congresso e pode propiciar uma instigante dissertação de mestrado na área de ciência política. Há teóricos que dirão que tal simetria ocorre por motivos diferentes. Entretanto, para um jovem afro-descendente que espera não repetir a saga de seus pais, avós, bisavós, trisavós etc. o efeito é olimpicamente o mesmo. O embate que temos é entre o arcaico e o moderno. Esse fato reforça a tese de que a esquerda e a direita modernas têm maior proximidade entre si do que com as respectivas matrizes atrasadas.
O que conta é que o voto negro caminhou na direção de Pitta -a margem de votos sobre sua oponente, bem acima do esperado, evidencia algo que os analistas convencionais ainda não localizaram. O certo é que a eleição de Pitta -gostem ou não- passa a ser um referencial importante pelas mudanças que poderá ensejar no futuro.

Texto Anterior: O grande êxodo
Próximo Texto: De fora; Proer; Cumprimento; Solidariedade; Lição de casa; Cassinos; Saúde; Benefício; Convite ao passeio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.