São Paulo, quarta-feira, 20 de novembro de 1996
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O grande êxodo

IVAN IZQUIERDO

Entre 1946 e 1996 aconteceu o maior movimento de massas da história universal. Mais de 2 bilhões de pessoas, no mundo inteiro, migraram do campo para as cidades. Ou seja, mais gente do que existia no mundo ao término da Primeira Grande Guerra. Pela primeira vez na história, hoje mais da metade da população do planeta é urbana.
Na maioria dos países, o fenômeno possivelmente já se encerrou, as cidades atingiram seu nível de saturação; na Índia e na China, ainda está em curso.
Em 1950, o Brasil era realmente "um país caipira": 64% de sua população era rural. Hoje, 78% dos habitantes do Brasil moram em cidades. Números semelhantes aplicam-se ao resto das Américas: 89% da população norte-americana, 85% da argentina e 80% da chilena são urbanas. Na Europa e em boa parte da Ásia os números são parecidos. Até os suíços deixaram de ser caipiras.
A urbanização se acompanha de diminuição da natalidade: cabem poucas pessoas num metro quadrado de asfalto. A taxa de crescimento anual da população brasileira caiu de 2,9% em 1950 a 1,3% hoje. A favelização afasta o fantasma da superpopulação.
É curioso como boa parte da política e da economia que se pratica ou se declama não leva em consideração esse fenômeno gigantesco, essa reorganização total da sociedade mundial, principalmente da do Ocidente. Fala-se, nos palanques, no Congresso, nas assembléias, como se os últimos 50 anos não tivessem existido; e, pior, legisla-se em consequência. O discurso político do Brasil é ruralista, dirige-se a um "país caipira" que quase não existe mais.
Os saudosistas, ansiosos pelo retorno impossível a um passado em que eles imaginam que seus pais eram os fazendeiros, acham que bom mesmo seria que todos "esses pobres" voltassem ao interior, onde seriam felizes. Acontece que boa parte desses pobres já nasceu nas cidades, e nenhum deles tem interesse em voltar a um ambiente onde os fazendeiros eram os pais dos outros.
Não é à toa que o êxodo rural foi tão gigantesco e universal. Houve várias razões para que bilhões de pessoas quisessem sair do campo, ainda que mais não fosse para morar embaixo de uma ponte paulistana. Uma razão é que se vive mais nas cidades: até um morador das pontes tem mais chances de receber atendimento médico do que um morador do sertão, ainda que pelo fato de poder, às vezes, caminhar até algum ambulatório ou uma farmácia. Um infarto, no meio do mato, é morte certa; numa vila, pode ser que não.
Outra razão é que, no campo, começou a faltar emprego, cada vez mais. Nos EUA, que são o país com agricultura e pecuária mais eficientes do mundo, a produção rural requeria em 1946 o emprego de mais de 30% de sua população; hoje, menos de 4% (para uma produção várias vezes maior).
No Brasil, é claro, o problema se complica pelo feudalismo de boa parte de seu território, onde terra produtiva permanece inexplorada por razões financeiras ou burrice. É necessário entender que é impossível a convivência dos séculos 21 e 13, lado a lado. O segundo pode acabar com o primeiro: Roma foi arrasada pelos bárbaros; os maias foram engolidos pela selva.
Em todo caso, muito mudou neste país e neste mundo com a urbanização. Vieram, sim, o estresse, o desemprego (também na cidade sobram mãos, hoje), o barulho, a poluição, a falta de espaço, o medo. Mas veio também a diminuição drástica da natalidade, veio uma diminuição, exígua, mas diminuição, enfim, da mortalidade infantil e veio um aumento da esperança de vida: vive-se hoje 20 anos mais que antes do início do êxodo rural. Boa parte das pessoas passou de nenhum atendimento médico a esse do SUS que aí está: omisso, pobre, ruim, distraído, precário, mas pelo menos ocasionalmente disponível.
Veio, com a urbanização, uma alteração radical dos hábitos, das preferências, de tudo: as famílias são menores, a linguagem é outra, as doenças são outras, as ambições são outras, até a música é outra. O povo mudou, mora em outro lugar, é mais numeroso, vive mais, pensa outras coisas, quer outras coisas. Vive estressado e fica impaciente com facilidade. É bom que os ocupantes dos próximos Executivos e Legislativos se dêem conta disso.

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