São Paulo, quinta-feira, 21 de novembro de 1996
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Pedagogia do vírus

OTAVIO FRIAS FILHO

Quase todo dia os jornais registram algum novo avanço da medicina. Como o assunto é sempre técnico, os relatos para o leigo ficam num resumo genérico, às vezes deficiente ou até errado. O melhor é quando usam metáforas do cotidiano, como os próprios cientistas cada vez mais fazem, para visualizar a descoberta.
A sensação que fica é a de que essas descobertas são menos importantes conforme se tornam mais numerosas, como se a medicina tendesse, como a física, para o infinitesimal. Claro que progresso existe, mais veloz do que nunca antes. O que se torna mais raro são os achados súbitos, as intuições espetaculares.
Nunca se pesquisou de forma tão organizada no mundo, nem a informação técnica circulou de forma tão imediata, o que explica a linha contínua onde a sequência importa mais do que cada elo em si. A medicina leva essa sequência até para além da esfera médica, para a alimentação, para os hábitos físicos e sexuais.
Como a peste bubônica na Idade Média ou a tuberculose para o romantismo, a Aids é a doença-síntese da nossa época. Esse mal metalinguístico, uma doença que causa doenças, surgiu das trevas para virar epidemia cavalgando duas velhas conhecidas nossas: a "revolução sexual" e a "globalização".
A derrota do HIV, que só começa a ser vislumbrada agora, após mais de uma década de epidemia, parece seguir aquele padrão progressivo. As descobertas reduzem o raio de ação da "besta", como Luc Montaigner chama carinhosamente a sua descoberta; bloqueiam, parcial ou temporariamente, sua ação destrutiva.
Mantida a gigantesca campanha de prevenção contra a doença, resultará um efeito coercitivo sobre a própria evolução de um vírus mutante como o HIV. Passa a ser questão de sobrevivência para a sua (a dele) espécie tornar-se mais e mais benigna, a fim de prolongar sua estadia em hospedeiros menos disponíveis.
Seria cumprido assim o roteiro de toda epidemia, ou seja, um deslocamento migratório qualquer expõe certa população inerme a algum microorganismo que suas defesas não identificam. Depois de um choque de extermínio, surge um período convergente em que as defesas aprendem, o invasor muda e se adapta.
Cada um de nós é um cemitério de epidemias, um museu de doenças extintas. O que a vacina faz é apressar o aprendizado entre receptor e invasor, de modo que este último se incorpore depressa ao acervo, ajudando a manter o local, se possível, em troca de pagamento literalmente em espécie: sobreviver.
É cedo pra comemorar. Mas é plausível que a Aids venha a ser a última epidemia, o que não significa o fim da medicina, cuja função antes de mais nada é batizar doenças ocultas sob as que já tinham nome, deixando a critério de cada organismo adiar aquele que é, segundo o filósofo Montaigne, o único direito inalienável.

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