São Paulo, quinta-feira, 21 de novembro de 1996
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Reeleição: a primeira derrota

SANDRA STARLING

Meios condenáveis conduzem a fins igualmente condenáveis. A tramitação do projeto de reeleição de Fernando Henrique Cardoso começou sob o signo do atropelo ao regimento interno da Câmara e à Constituição Federal.
Por determinação do presidente da Câmara, foi instalada a comissão especial destinada a examinar a matéria. Admitida na Comissão de Constituição e Justiça em abril de 1995, a proposta encontrava-se parada, aguardando o sinal verde do Planalto. Sua instalação às vésperas de um recesso branco não foi obra do acaso. Dessa forma, as dez sessões regimentais para a apresentação de emendas transcorreram no cenário de um Parlamento esvaziado, dificultando a coleta do número mínimo de 171 assinaturas para aquele fim.
A data escolhida para a instalação da comissão serve também ao interesse pessoal do presidente da Câmara, em fim de mandato, mas empenhado em passar à história como um dos principais responsáveis pela concessão de um novo mandato ao príncipe. Atende ainda aos interesses do Planalto a escolha de Odacir Klein, ex-ministro dos Transportes, para presidir a comissão.
Armado o cenário, a pressa foi adotada como método, começaram os atropelos e lambanças que têm marcado o nosso processo legislativo. Klein indicou para relatar a matéria o deputado José Múcio (PFL-PE), um dos autores da proposta de emenda constitucional (PEC-guia) e de três outras apensadas. Talvez porque os deuses ceguem os que querem derrotar, Klein e seus aliados não perceberam que José Múcio estava impedido de relatar a matéria em questão porque é signatário da proposição principal e de outras a ela apensadas.
O impedimento referido está contido no artigo 43º, parágrafo único, do regimento interno da Câmara:
"Nenhum deputado poderá presidir reunião de comissão quando se debater ou votar matéria da qual seja autor.
Parágrafo único. Não poderá o autor de proposição ser dela relator, ainda que substituto ou parcial.".
O artigo 102 do regimento estabelece:
"A proposição de iniciativa de deputado poderá ser apresentada individual ou coletivamente.
Parágrafo 1º. Consideram-se autores da proposição, para fins regimentais, todos os seus signatários".
Mas a evidência de que José Múcio estava impedido não reside apenas no regimento. Ela tem também fundamento na Constituição, cujo artigo 60, inciso 1º, estabelece:
"A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; (...)".
Ao impor um quórum qualificado para iniciativas que visam reformar a Constituição, o legislador de 1988 quis criar um mecanismo que impedisse a banalização das reformas da Carta, o que tem se revelado muito necessário nestes tempos de golpismo tucano.
Com estes argumentos, apresentei questão de ordem à mesa da Câmara solicitando a substituição do deputado José Múcio no cargo de relator da PEC da reeleição. O presidente da Câmara, guiado pelos deuses da cegueira e das trevas, respondeu negativamente à questão mencionada. Para ele, o parágrafo único do artigo 43 do regimento interno deve ser interpretado de maneira restritiva, "aplicando-se de modo absoluto apenas à iniciativa individual e à autoria coletiva voluntária".
Alega ainda: "No caso de iniciativa coletiva imposta pela Constituição ou pelo regimento interno, não há a presunção de vinculação obrigatória no que diz respeito à autoria dos assinantes com o conteúdo da proposição, à exceção do primeiro, que assume a paternidade política da proposição, em conformidade com a prática amplamente consagrada na Casa, afastando-se, nessa hipótese, a rigidez proibitiva".
Assim, Luís Eduardo Magalhães, muito acostumado a atropelar o regimento interno, resolveu revogar, por conta própria, o inciso 1º do artigo 60 da Constituição, determinando que as PECs teriam um único autor, que seria o seu primeiro signatário. As demais assinaturas seriam de apoiadores que, segundo o alto saber jurídico do presidente da Câmara, "não se presumem a ela vinculadas no que diz respeito à sua autoria".
Nero, que ateou fogo a Roma, mas que tinha Sêneca como conselheiro, teria sido mais prudente. Mais sábio do que Luís Eduardo foi o líder do PFL, que, percebendo que o atropelo poderia ser derrotado no plenário da Câmara e que, certamente, não prosperaria diante do Supremo Tribunal Federal, resolveu substituir o relator Múcio.

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