São Paulo, sexta-feira, 22 de novembro de 1996
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A criação da zorra

JANIO DE FREITAS

Desde o primeiro momento, soava meio maluca a história de que o senador Sarney propusera a troca da reeleição pela permanência da Vale do Rio Doce como estatal. Suas palavras ficaram gravadas e, ouvidas para tirar dúvida, nem de longe poderiam ser interpretadas como a sugestão que há dois dias agita o noticiário.
A deturpação do que não queria ser mais do uma metáfora -esquecido o autor de que para mau entendedor meia metáfora basta- multiplicou-se, parece que ao infinito, em "non-sense" que nem se limita mais às pessoas: alcançou, em cheio, a própria privatização pretendida pelo governo.
Para repor alguma ordenação, é preciso começar situar a proposta de negociação no lado certo. Quem a apresentou, e reiterava no dia mesmo em que a atribuíam a Sarney, foi Fernando Henrique Cardoso. Sem mencionar a reeleição, mas de olho também nela, porque o objetivo da transação não é apenas amansar senadores para a privatização da Vale. É, na mesma medida, evitar deixar que a privatização os incite contra a reeleição.
Os senadores haviam descoberto, em uma pequena frase no texto introdutório do recente pacote econômico, que o governo mudara a destinação combinada para o dinheiro de venda da Vale. A mudança de destinação, omitindo investimentos em Estados onde a Vale funciona e usando o dinheiro só em pagamentos da dívida governamental, era verdadeira mas não era para ser dita.
A constatação fortaleceu o projeto de que a privatização da Vale passe pelo crivo do Senado, o que o governo não quer. Daí a proposta governamental de negociação, que começava a ser conduzida com a discrição conveniente às concessões que desqualificam o texto de Pedro Malan e Antonio Kandir.
E de repente Sarney, desejando apenas ilustrar a resistência à privatização da Vale, a ponto de haver no Senado quem fosse capaz até de topar a reeleição para salvar a estatal, é vítima de uma interpretação que logo não se satisfaz com ele só. A suposta sugestão desaba sobre todos os senadores pró-Vale, dados como partes da imaginada barganha. Ao que Fernando Henrique pressentiu mais uma oportunidade de reflexões intelectuais típicas: "são saudosos do passado e eu trabalho olhando pra frente", e outras mesmas coisas de igual profundidade.
O que Sarney queria e não fez, os jornalistas fizeram. Alguns sem querer.

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