São Paulo, sexta-feira, 22 de novembro de 1996
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Os "se não fosse" são recheio de toda biografia

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gosto muito do "Livro de Cozinha de Alice B. Toklas" (Companhia das Letras), resenhado aqui, na semana passada, por Marilene Felinto. Só não entendi bem dois comentários da matéria, de resto boa. Vocês, leitores do ramo, que me ajudem.
A resenhista afirma que Alice B. Toklas seria uma Maria da Silva qualquer se não fosse lésbica, se não fosse mulher de Gertrude Stein, se não tivesse sido imortalizada em "Uma Autobiografia de Alice B. Toklas", se não tivesse frequentado gente muito famosa e essa gente não a tivesse frequentado.
Ora, se não fosse por tudo isso, ela não seria ela! E se não fosse o Anjo que anunciou o Menino, Maria também seria uma Maria qualquer... Os "se não fosse" são os recheios de todas as biografias... Alguns mais salgados, outros mais doces, mas sempre recheios.
Não entendi mesmo, a não ser que seja um truquezinho literário para poder contar todas as histórias acima com um certo distanciamento desinteressado, levemente esnobe.
É verdade, no entanto, que a leitura pode perder muito da mágica e da graça se o leitor pular a introdução brilhante de M. K. Fisher e não souber nada sobre Gertrude Stein e sua corte, os expatriados de Paris no começo do século.
Recomendo o livrinho delicioso de Gertrude Stein "A Autobiografia de Alice B. Toklas" como um "companion" para aproveitar ainda mais o livro de receitas.
Alice se propôs a escrever receitas e mais nada. Ela própria diz: "Como se um livro de receitas tivesse alguma coisa a ver com escrever...".
Saiu um livro simples, fácil, cândido, às vezes excêntrico, com tiradas geniais, muito bom senso, receitas francesas esquecidas e interessantes, nenhuma fofoca escandalosa, ou melhor, nenhuma fofoca. Descreve uma época e um modo de vida através das lentes da comida e vem sendo publicado sucessivamente desde 1954.
Alice era uma dona de casa perfeita, ocupação consentida e prazerosa. Por que será tão difícil de entender, depois do discurso feminista e da libertação da mulher, que alguém possa gostar da casa, da cozinha, da horta, do jardim? Esse é outro ponto que me faz implicar com a resenhista.
Ela acaba a matéria dizendo do livro: "Para quem não tem o que fazer e gosta de cozinhar, estão aí as receitas recheadas de fofocas da mulher Babette de Gertrude Stein". Que história é essa? Cozinhar é para quem não tem o que fazer? Ou ler receitas é para desocupado? Está meio dúbio.
O que foi, dona resenhista, deu bobeira ou está querendo provocar? Menina briguenta, cresça e apareça, aprenda a fritar um ovo e daí venha conversar com cozinheiro... Quem lhe enfiou na cabeça que livros de forno e fogão não rimam com ocupação?
Lendo o capítulo das hortas de Bilignin vamos ver que paixão tinha Alice por plantar, cuidar, colher, preparar o alimento. Era trabalho de tempo integral e mais ainda. Uma experiência profunda que lhe dava força e equilíbrio. Na hora de voltar a Paris o coração apertava.
"O que mais me dava orgulho era o dia do ano em que as grandes cestas eram acondicionadas. O sol frio brilhava nas cenouras alaranjadas, nas abóboras verdes, amarelas e brancas, nas roxas berinjelas e nos últimos tomates vermelhos da estação. Para mim eram de cor mais pungente do que qualquer quadro pós-impressionista. Só de olhar para eles os prazeres do resto do ano se tornavam insignificantes...
A felicidade doméstica de Gertrude e Alice é de dar inveja até hoje. No campo, na cidade, as duas, ajudadas por ótimas empregadas, aprendiam e punham em prática tudo sobre comer e beber bem, com muito dinheiro ou sem nenhum.
É de dar inveja mesmo, vocês vão ver.
E em matéria de pintura, literatura e comida pousariam os pés no ano 2000, com suas sandálias Birkenstock "avant la lettre", sem um dia de atraso.

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